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Os gigantes na época de Noé


"Naqueles dias, havia gigantes sobre a face da terra, pois os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e elas tiveram filhos; estes são os heróis, tão afamados nos tempos antigos" (Gênesis 6,4).

Darren Aronofsky, co-autor e diretor do novo filme “Noé”, estrelado por Russell Crowe, vem sendo criticado pelas liberdades que tomou diante do texto bíblico. Em sua resenha escrita para o New York Times, como exemplo dessa liberdade criativa de Aronofsky, o crítico A. O. Scott observa: "A Bíblia menciona que ‘havia gigantes naqueles dias’, mas não especifica que eles fossem colossos de pedra com seis braços nem que tivessem as vozes de Nick Nolte e Frank Langella".

O caso é que "gigantes" são mesmo mencionados em Gênesis, capítulo 6, versículo 4. A tradução latina da Bíblia (a Vulgata) usa exatamente essa palavra: “gigantes autem erant super terram in diebus illis”. A tradução inglesa, pela New American Bible, escolhe um termo menos colorido: “The Nephilim appeared on earth in those days” [Os nephilim apareceram na terra naqueles dias]. Por que nephilim? A palavra é transliterada do texto original em hebraico. Segundo os estudiosos, a palavra significa "gigantes", mas deriva de uma raiz que significa "caídos" ou "aqueles que causam a queda de outros".

Quem são, afinal de contas, esses gigantes?

Eles aparecem no Gênesis logo antes da história de Noé e do dilúvio e depois dos relatos sobre os dois filhos de Adão e Eva: Caim, a semente ruim que assassinou o irmão Abel, e Seth, a boa semente que substituiu Abel. Os descendentes de Caim são os primeiros a tomar duas esposas (Gênesis 2,21-24), uma perversão da ordem marital estabelecida por Deus no Jardim do Éden (procure, a propósito, a fascinante discussão sobre o Gênesis no site do St. Paul Center for Biblical Theology, dirigido por Scott Hahn; está em inglês).

Os descendentes de Seth, por outro lado, desenvolveram um relacionamento de oração com Deus, chamando-o pelo nome (Gênesis 4,26). Mesmo eles, porém, eram propensos à rebelião e começaram a tomar como esposas as belas filhas da linhagem de Caim; além disso, parecem ter seguido os primos na ideia de tomar mais de uma esposa (Gênesis 6,1-4). Foi da união dos homens da linhagem de Seth com as mulheres da linhagem de Caim que nasceram os gigantes, monstros vindos da mistura de boas e más sementes. Por causa das calamidades que a sua criação provocou, Deus se arrepende (Gênesis 6,6). É então que começa a história de Noé, do dilúvio e da arca.

Os gigantes aparecem mais de uma vez nas Escrituras. Em Sabedoria 14,6, evocando-se a história de Noé, lemos: "Quando, no princípio dos tempos, fizestes perecer os gigantes orgulhosos, a esperança do universo, refugiada em uma nau governada por vossa mão, conservou para o mundo o germe de uma geração".

E Baruc, meditando sobre a criação de Deus, afirma: “Lá nasceram os famosos gigantes antigos, de estatura imensa e alma de guerreiros. Não os escolheu Deus, nem lhes mostrou o caminho da sabedoria. E, por falta de sagacidade, pereceram, vítimas da própria estultícia” (Baruc 3,26-28).

Esses textos indicam que os gigantes não eram chamados assim somente por causa da sua grande estatura. Uma nota da tradução inglesa Douay-Rheims da Bíblia (Gn 6,4) especula: "É provável que, no geral, os homens de antes do dilúvio tivessem estatura maior que a dos seus sobreviventes. Mas os chamados ‘gigantes’ não o eram apenas pela altura, mas por serem violentos e selvagens, meros monstros de crueldade e luxúria".

Os gigantes de que fala a Bíblia, portanto, são, principalmente, “monstros morais”.

A tradição literária católica abriu espaços imaginativos para os gigantes do Gênesis. Eu os encontrei pela primeira vez em meus estudos sobre o poema épico medieval Beowulf, a história dos confrontos de um herói com três monstros temíveis. O autor de Beowulf, cujo nome se perdeu na história, mas que certamente era cristão e pode até ter sido um monge, descreve o primeiro dos gigantes, Grendel, como “um do clã de Caim”. 

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