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A moderna semana santa expulsa Jesus da história humana (III): a cruz virou refresco e teatro sem compromisso






Querida amiga Ester


Sou-te muito agradecido pela gentileza com que guiaste meus passos aí no contato com todas as pessoas e grupos. Percebi teu sofrimento como jovem mãe a criar sozinha teu bebezinho. Teu trabalho te rende um salário mínimo enquanto tua babá recebe R$300,00. Espero que consigas breve a creche pública, que é de excelente qualidade, segundo me informaram.


Na semana passada o mundo viveu a chamada semana santa, que cada vez mais as novas gerações denominam de feriadão, sem a menor reflexão sobre seu significado. Nós cristãos continuamos a viver os reflexos da páscoa até o pentecostes. Portanto, falar sobre os acontecimentos da semana santa é parte da agenda pascal. 


Os eventos em torno da crucificação de Jesus se relacionam com todo o contexto já referido pelas cartas anteriores que escrevi me referindo à falsificação da eucarisitia e o empobrecimento do lava pés, que virou teatrinho de emocionar beatas, sem qualquer relação com o que Jesus de fato viveu, segundo os evangelhos canônicos. 


Os pregadores e as pregadoras, agora também em grande número, os cantores e cantoras que dominam o dito mercado sacro adoram falar e cantar a cruz e o sangue derramado de Jesus. Parece que a crucificação é bom marketing de vendas de produtos que a exaltam. Até ditados estilo popular criaram: “pelo sangue do cordeiro”, estilo “pelo amor de Deus”, que não significa nada, a não ser identificar crente “crentão”. 


As dramáticas pregações de pregadores/pregadoras que até ensaiam à frente de espelhos e gravam suas pregações para avaliar o impacto que causarão no público emocionado e sem critérios críticos para compreender que tudo não passa de sabonete perfumado para aliviar os crimes que o escravagismo, o feudalismo e o capitalismo impactam sobre os massacrados pela exploração, com a inegável colaboração de religiosidades que açucaram o peso do sofrimento do povo.


Começa que pregadores/as sem preparo adequado, a não ser o que recebem em forma de cursinhos de oratórias misturados com a destorcida neurolinguística, fazem uma confusão predatória com os messias aspirados pelo Velho Testamento e Jesus, o messias do Novo Testamento. Não entendem que este não tem nada a ver com aqueles. O Velho Testamento nada pensa, nada escreve ou nada sonha com Jesus. O Jesus do Novo Testamento não tem nada a ver com o servo sofredor de Isaías. Há apenas figurações literárias semelhantes e nada mais. 


Os/as pregadores/as provocam emoções chorosas nas massas, que não sabem a realidade da cruz, seu contexto e significado políticos. Encenações até brutais da crucificação impressionam, mas não se relacionam com o que acontecia na Palestina nos tempos de Jesus. Encenações, pregações e poesias cantadas são vazias do Jesus palestinense crucificado pelo império romano com a importante ajuda do templo judaico e de seus teólogos fariseus. 


É verdade que a cruz é chave importante para se interpretar e ler o Novo Testamento, como o êxodo é fundamental para entender as propostas do Velho Testamento, ensinava o saudoso teólogo ecumênico e pastor luterano Milton Schwantes. 


Porém, é necessária honestidade de interpretação, longe dessas pregações de rádio e televisão, com o objetivo de encher os templos de propriedade dos pastores, padres e bispos amantes de dízimos. 


Na velha e viciada pregação emotiva Jesus é destinado desde os tempos antigos para ser crucificado para nos salvar dos pecados, que os teólogos de várzeas definem como deslizes morais, invariavelmente sob uma ótica farisaica e moralista.  O Jesus de que falam é um ser fantasmagórico, sem consciência social, desenraizado histórica e geograficamente, totalmente manipulado por um Deus que descarrega sobre ele o ódio que tem da humanidade pecadora, que Ele mesmo criou e errou ao projetá-la. Ao triturá-lo sobre a cruz como um bode indefeso esse Deus dos pregadores desvia todas as culpas da humanidade para cima dele. Resultado: o sangue desse Jesus manipulado e fantástico vira moeda de troca que os coitados pecadores convertidos devem resgatar, onerados com pesados dízimos e chantageados a frequentar igrejas de domingo a domingo, como se fosse pagamento, via de regra sob comando de religiosos extremamente autoritários, alienados ou comprometidos com a direita mais esquizofrênica possível, sem nenhum toque com a realidade histórica e social dos tais convertidos e “libertos” pelo sangue santo do Jesus que pregam, num autêntico sadismo emocional. 


Essa gente de igreja não admite nada que não sejam as suas “verdades”. Caso alguém comece a perceber a máquina armada e o uso da figura de Jesus para manipular o povo em favor dos seus negócios, é perseguida e expulsa sem defesa. 


Na verdade, o Jesus dos evangelhos foi abandonado e sua cruz virou refresco e teatro mal ensaiado para enganar as massas exploradas. Tudo o que os/as pregadores/as dizem sobre a cruz é para cegar as pessoas e torná-las presas fáceis dos exploradores, que as preferem dóceis e acríticas. Antes de construírem um templo grande a primeira coisa que constroem é uma cruz para impressionar. Tanto que nas colonizações que vitimaram indígenas e os povos originários das terras, que de direito eram deles, os missionários usaram a cruz para humilhar os legítimos proprietários e até para matar muitos deles que resistiram. 


O Jesus dos/as pregadores/as enfrentou a cruz sem reagir por ser escolha eterna do seu Deus vingativo, principalmente com os pobres e massacrados pela exploração. 


Na verdade, Jesus foi vítima do império romano. Este costumeiramente crucificava sediciosos que contra ele se rebelavam e que lideravam o povo para resistir suas invasões e truculências. Jesus foi perseguido o tempo inteiro pelo império romano, desde seu nascimento. Cruz é exatamente isso: conflito de interesses entre o poderio romano e a fragilidade palestina invadida e pisada. 


Jesus foi crucificado porque optou pelos explorados. As tentações que sofreu eram a angústia entre escolher submeter-se ao império ou servir o povo humilhado e amedrontado pelas patas dos cavalos de guerra dos poderosos. 


Jesus sofreu ao não conseguir escapar da cruz imposta pela aliança do império carniceiro com a religião que traiu a autêntica aliança libertadora do povo. Na famosa angústia no Jardim do Getsêmani  seu sofrimento subiu a níveis insuportáveis de stress ao ponto de suar sangue, tal era o medo e a insegurança que sofreu em face da iminente tortura do julgamento espúrio, na calada ilegal da madrugada e despojado de quaisquer provas a caminho da cruz dos insurgentes, provas que não importam para os inimigos do povo e seus amados líderes.  


É falsa a pregação de que a cruz de Jesus salva. Os colaboradores e narcotizantes da exploração não dizem que o que salva é a luta libertária a que Jesus se entregou, mesmo a custa da liberdade e da própria vida. 


A cruz na qual Jesus foi pregado ao lado de outros heróis do momento é consequência de sua opção por Madalena, pelos leprosos abandonados, pelas prostitutas exploradas pelos sacerdotes e religiosos, pelos famintos que saciou,  pelas crianças mortas por quaisquer  razões, como descreve o mito de Herodes que matou os meninos com menos de 2 anos à caça da criança Jesus de Belém. O império romano, com o auxílio de setores religiosos, impôs a cruz sobre Jesus e o pregou nela porque o caminhante da Palestina divergiu dos rumos seguidos pelos capachos religiosos que se curvaram traiçoeiramente à ganância do invasor assassino, que arrancava impostos pesados do povo sem fôlego para viver.


A cruz de Jesus não aconteceu por dogma ou para enfeitar com seu sangue o egoísmo de convertidos a um fantasma acomodado, acomodador e alienante. Não, a cruz de Jesus era uma espécie da cadeira elétrica construída pelos opressores para eliminar o projeto de libertação dos humildes. 


É isso que tem que se pregar. Mas isso não dá dinheiro. Essa cruz real e política perturba e deixa o Jesus dos evangelhos muito comprometido com o povo e distante do moralismo que penaliza os que já se sentem culpados pela pobreza e carência de vida digna e justa. 


Em tempos da campanha eleitoral os pregadores da cruz refresco, instrumento de alienação, correm desesperadamente ao encontro dos candidatos que lhes dão mais vantagens em dinheiro, notadamente os de direita. 


Portanto, a cruz refresco e teatral nada tem a ver com o Jesus dos evangelhos. Ela é puro palco onde os religiosos pregadores prontamente entregariam o Jesus palestino à crucificação, naqueles tempos aos romanos, hoje aos Estados Unidos, a quem veneram e para onde viajam, inclusive usando a Bíblia como carteira para transportar dólares. 


Não creio nenhum pouquinho nesses e nessas pregadores/as. São adúlteros/as da consciência e criminosos como os soldados romanos, sempre prontos a chicotear, a cuspir e coroar com espinhos o Cristo do povo.


Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.

Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.

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