O que escondo no bolso do vestido - Poema de Betty Vidigal

Foi em uma conversa sobre a qualidade dos poemas, quais aqueles que se tornam mais significativos em nossa vida , diferentemente de outros que não sensibilizam tanto, nem atingem a universalidade, que Betty Vidigal foi buscar, de outros tempos este poema, "Escondido no Bolso do Vestido", que agora apresento ao leitor do Pó das Estradas, para o seu deleite.



O que escondo no bolso do vestido 
não é para ser visto por qualquer 
um que ambicione compreender 
ou que às vezes cobice esta mulher. 

O que guardo no bolso do vestido 
e que escondo assim, ciumentamente, 
é como um terço de vidro 
de contas incandescentes 
que se toca com as pontas dos dedos 
nos momentos de perigo, 
para afastar o medo; 

é como um rosário antigo 
que um fiel fecha na palma da mão 
para fazer fugir a tentação 
quando um terremoto lhe ameaça a fé: 

Jesus, Maria, José, 

que meu micro-vestido esvoaçante 
não vos ofenda em vão os olhos castos; 
que minhas sandálias de prata 
não me falhem nos instantes de cansaço; 
que a tiara de princesa que não uso 
não se perca entre os dedos dos incautos, 
os sonhos dos reclusos; 

que eu nunca quebre um salto!,

que não me falte jamais um parafuso 
(não que se note); 
que com sorte, cautela e canja 
eu me transforme um dia numa anja 
e lá do alto 
repique os sinos 
para congregar os loucos, os aflitos, 
os que vos chamam aos gritos, 
os que nunca têm respostas. 

Mas que mantenha nos bolsos, 
mas que mantenha nos olhos 
um breve contra os olhados 
– bons e maus! 
Que continuem assim os meus vestidos: 
precipitados nas costas, 
bem curtos, desaforados, 
mal-comportados, bonitos. 

O que inda escondo nos bolsos 
e murmuro nos instantes adversos 
é um verso medieval 
escrito às pressas 
em dialeto provençal, é claro, 
por um bardo meio analfabeto 
com caracteres rabiscados, inseguros; 
é uma bola de cristal 
que não deixa prever o futuro; 
é uma invocação, um cântico, 
um patuá romântico 
cheio de pétalas azuis, 

– para me proteger das bruxas que não fui; 
dos passes 
que jamais permiti que me encantassem; 
da maldição 
que não veio dos meus sins, mas sim de um não 
– de um único não, 
uma bobagem, 
que não daria jamais 
um furo de reportagem.

Betty Vidigal
Betty Vidigal

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