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"O Islã ainda espera a sua revolução cultural." Entrevista com Samir Khalil Samir

Quinta, 29 de janeiro de 2015

A cultura do encontro proposta pelo Papa Francisco na Evangelii gaudium 
é a chave para uma relação fecunda entre Islã e Ocidente. Mas o mundo 
muçulmano é chamado para fazer uma revolução cultural para se reconciliar
 com a modernidade e rejeitar com clareza as sereias do fundamentalismo
 e da violência. Palavra de Samir Khalil Samir,  egípcio, também jesuíta,
 islamólogo de renome internacional, professor do Pontifício Instituto 
Oriental de Roma, desde sempre empenhado em um diálogo autêntico.
A reportagem é de Giorgio Paolucci, publicada no jornal Avvenire
28-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
O terrorismo de matriz islâmica está sendo usada com grande eficácia
 a rede como instrumento para o recrutamento de novos adeptos. 
Alguns observam que a internet está substituindo as mesquitas...
No mundo muçulmano, as mesquitas continuam, desempenhando um 
papel fundamental na formação das consciências. A grande maioria considera
 decisivo o que é dito durante a khutba, a pregação da sexta-feira que – aliás –
 geralmente pesa muito mais do que as homilias proferidas pelos párocos 
nas igrejas. E, infelizmente, muitos imãs propõem uma leitura fundamentalista do 
Alcorão, que chega a justificar o recurso à violência em nome de Deus
Tudo isso é filho de uma abordagem radical que é proposta na maioria das 
universidades islâmicas, onde, há décadas, difundiu-se como um vírus
pensamento wahhabita nascido na Arábia Saudita e depois propagado – 
também graças a enormes financiamentos – para outros países 
islâmicos e também para o Ocidente.
Por que fala de "vírus"?
Porque o grande problema do mundo muçulmano está na incapacidade
 de conjugar a fé e a modernidade. Quando se lê o Alcorão, é preciso usar
 a razão e, portanto, dar espaço para a interpretação, para a exegese, para o
 espírito crítico, como a Igreja soube fazer ao longo dos séculos. No Islã, ao 
contrário, continua prevalecendo uma abordagem "mecanicista", que leva a 
praticar uma espécie de "copia e cola", razão pela qual certos versículos do 
livro sagrado dos muçulmanos, escritos no século VII, são repropostos como 
se fossem receitas para responder às perguntas postas pela atualidade. E, 
assim, o recurso à violência, que nos tempos de Maomé era amplamente
 praticado – como demonstra a história da expansão islâmica nas primeiras
 décadas depois da sua pregação –, é legitimado e até exaltado. Mas isso 
correspondia à mentalidade da época!
Mas há quem no mundo islâmico se oponha a essa abordagem...
É verdade, mas os pensadores iluministas ainda são muito poucos, isolados, 
muitas vezes criticados e pouco influentes sobre as massas, que – não 
podemos esquecer – expressam uma difundida ignorância (no Egito, 40% são 
analfabetos) e, portanto, confiam nas interpretações propostas pelos imãs. 
Por isso, estou convencido de que a questão fundamental é a necessidade 
de uma nova hermenêutica, de uma nova abordagem ao Alcorão e à tradição, 
que deveria ser ensinado aos imãs. Alguma coisa está acontecendo, e, nesse
 sentido, considero muito importantes as palavras pronunciadas pelo presidente
 egípcio, Al-Sissi, na Universidade de Al-Azhar, que é o principal centro de 
irradiação do pensamento sunita em nível mundial e forma a cada ano milhares
 de imãs que atuam no Egito e em muitos outros países.
Al-Sissi pediu um esforço dirigido contra as más interpretações do Islã, que 
incitam à violência e ao fechamento em relação às outras comunidades, e se
 perguntou como é possível que a religião islâmica seja percebida como "fonte 
de ansiedade, perigo, morte e destruição" pelo resto do mundo. Ou como é 
possível haver entre os muçulmanos quem pense que a segurança só pode
 ser alcançada eliminando os outros sete bilhões de habitantes do mundo. 
Palavras pesadas, embora eu tema que será preciso muito tempo para que 
se tornem pensamento difundido e cheguem a forjar a mentalidade e os 
comportamentos das pessoas. Mas o Islã deve fazer a sua revolução cultural, 
em vez de continuar olhando para trás.
Como se explica a forte capacidade de atração que estão exercendo as 
tendências fundamentalistas também entre os muçulmanos que vivem 
há muito tempo na Europa?
Acho que é justo especificar, acima de tudo, que a maioria da comunidade 
não se reconhece nessas tendências. A força de atração exercida pelos 
extremistas depende principalmente de dois fatores: a fraqueza da proposta
 ideal por parte do Ocidente, que é visto como uma civilização decadente,
 cada vez mais distante de um verdadeiro sentimento religioso, e o fascínio 
exercido por palavras de ordem essenciais, que veiculam slogans de efeito, 
prometendo paraísos (inexistentes), veiculam a ilusão de uma regeneração 
pessoal e coletiva. E, então, também a violência é aceita a fim de alcançar o 
objetivo. Quando uma promessa barata se insere em uma razão enfraquecida,
o deslize para o fundamentalismo torna-se mais fácil.
Com os tempos em que vivemos, o diálogo parece ser uma utopia ou algo que 
pertence mais aos círculos intelectuais do que à realidade cotidiana.
 No entanto, há uma compenetração cada vez mais estreita entre Islã e 
Ocidente, que são obrigados à coexistência. O que é possível para construir
 uma verdadeira convivência?

O ponto de partida é a comum humanidade que nos constitui. Acima de tudo, 
somos pessoas, e, na vida cotidiana, são muitas as ocasiões em que cristãos
 e muçulmanos encontram-se lado a lado e aprendem com a experiência como
 se pode viver juntos. Há poucos dias, o papa disse novamente, de forma muito
 clara, ao receber os membros do Pisai (Pontifício Instituto de Estudos Árabes
 e de Islamística): "No princípio do diálogo, está o encontro. Dele, gera-se o
primeiro conhecimento do outro". Acho que uma das indicações mais recorrentes
 deste pontificado, a cultura do encontro, é a chave para se fundamentar a 
construção de uma convivência sólida. Partindo da redescoberta do eu, da própria
 identidade vivida como recurso para encontrar o outro, e não como "arma" para 
se contrapor. É um desafio vertiginoso, mas me parece ser o único caminho que
 pode dar frutos. Quem repropõe a contraposição frontal faz o jogo dos carnífices
 do Estado Islâmico.

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