Não consigo escrever poemas por lógica, por decisão.
Assalta-me o pensamento vindo dos abismos interiores, e inicio uma tradução não verbal, até adquirir letra.
Não convida, impõe, não pede licença, interrompe.
Apresenta talento que desconheço em mim mesmo, e surpreendo-me.
Não é estranho, mas não se submete à minha realidade.
Emerge como se me visse íntegro.
Aceito de bom grado este eu escondido, remoendo vísceras, estancando hemorragias, antenando canais interiores.
Acostumei-me a estas delícias.
Fazem o contraponto de minhas quimeras cheias de incensos e ambrosia.
Atinge o batimento cardíaco regando compassadamente o cérebro.
Vem quando quer e como quer.
Às vezes é raro, nunca tardio; outras, um aluvião (e eu observando atônito).
Acontece, simplesmente, sem sinos, relógios, em plena cama, no carro, boteco, vaso sanitário, cheio de movimentos peristálticos.
Não pede livros, não se arroja em querer ser conhecido, não me interroga.
Apenas vem.
Posso recusá-lo, mas conto nos dedos as ocasiões de tanta desfaçatez.
De vez em quando consigo reuní-los num corpo único, e lanço sem pretenções.
Dois ou três já me alegram o compartilhamento, ainda mais, se entronizam e saboreiam.
Da mesma forma que vem, vai.
Passa meses ou ano embutido, no meu subconsciente, ou sei lá onde de mim, mas não está morto.
Despreza (nunca me disse) a forma como vivo, e a trata-me como a um afogado, tentando ressuscitar-me.
Faz o contraponto do que nunca serei.
Por isso o admiro pelo inusitado esforço de vir à tona.
Somo irmãos, desconhecidos e sem convívio.
Ele lá, eu aqui.
Ele noite, eu dia.
Não nos confrontamos, mas nos respeitamos.
Sou eu que não me conheço nele.
E ele quem me conhece por rejeição.
Postado num diálogo com outro eu e o João Paulo Naves Fernandes
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