A condenação à morte por "crime" de adultério, com o apedrejamento da iraniana Sakined Ashtiani, ainda que utilizada para a campanha internacional dos EUA na questão nuclear(o que não deve nos fazer embarcar nesta campanha sem discernimento), põe à mostra a questão da diferença entre um Estado Teocrático e o Estado Laico.
Num Estado Laico, de maneira geral, a questão moral torna-se uma decisão de foro íntimo, isto é, está na própria pessoa, no cidadão, o decidir sobre o que é moralmente certo ou errado. Estado Laico não significa Estado sem religião, mas afirma que o controle religioso sobre o fiel fica restrito principalmente à esfera de cada grupo religioso, mas não do Estado. Assim, deve haver uma convivência amistosa, e com definição de limites entre as partes.
Já o Estado Teocrático estabelece o controle do Estado sobre as questões morais e religiosas, indo além, e dando suporte às religiões predominantes, que acabam tornando-se "oficiais". Desta forma, o Estado Teocrático não tem sintonia com a via democrática, mas caminha numa linha de autoritarismo quase que obrigatória (vide a apuração das eleições presidenciais iranianas, que levaram a um endurecimento do regime).
Assim, ao interferir nas questões religiosas em um Estado Teocrático, coloca-se automaticamente em cheque a unidade nacional, pelo nível de dependência de um ao outro para a sustentação do regime. O episódio que ocorreu, quando o Presidente Lula, afirmando ser um cristão sentimental, intercedeu pela vida de Sakined, recebeu uma resposta contundente do chanceler ireniano. Mexeu num vespeiro.
Vemos no mundo, desde a segunda metade do século XX, o crescimento do chamado fundamentalismo religioso, de um lado, representando uma fé superficial, na leitura literal dos textos sagrados; e de outro, o chamado secularismo religioso, que é o desapego à religião, resultado do usufruto dos benefícios da sociedade de consumo, que abastece o homem, e o faz desprezar esta dimensão espiritual, como se vê principalmente na Europa de hoje.
Um e outro tem muito a ver em comum(secularismo e fundamentaliso). Um fiel secularizado, quando diante dos problemas da vida, ao buscar soluções na religião, por não ter formação, adere com facilidade a estas formas fundamentalistas, que encontram ambiente propício de crescimento. Muitas igrejas no Brasil cresceram neste ambiente, se estruturaram e foram para outros continentes, exportando este fundamentalismo, com boa aceitação. As igrejas tradicionais que o digam.
Já o ateísmo, que foi forte até os anos 50, pela influência dos partidos políticos com tradição revolucionária de Marx, Engels e Lenin nas transformações sociais no mundo, foi sendo colocado de lado, desde o momento em que os movimentos revolucionários no mundo, principalmente no Oriente médio, assumiram uma matiz religiosa fundamentalista, que acabou prevalecendo
Veja-se a OLP laica e o Hamas fundamentalista se destruindo sob os olhos de Israel; o Iraque, antes sunita, e agora shiita, em explosões diárias e mortandade sem fim, o Afeganistão e o Paquistão da Al qaeda, que não aponta para solução, mas para um aguçamento de longo prazo. Também na Irlanda do Norte com os fundamentalismos cristãos, católicos e evangélicos.
Gandi, em uma das vezes em que esteve preso, leu e meditou a bíblia, principalmente os evangelhos. Ao sair declarou que quase havia se tornado um cristão, ao ler a Bíblia. Perguntarem-lhe então, porquê não havia se tornado um cristão. Ele respondeu:
- Por causa dos cristãos.
É o chamado contra-testemunho, desvendando as realidades por trás das pregações.
Lembro-me de Marx, nos seus manuscritos econômico-filosóficos refletidos em um século de quebra de paradigmas, como o foi o século XIX: " As pessoas e as instituições não são aquilo que elas dizem que são, mas são o que são".
Os EUA não se tornaram um Estado religioso, devido principalmente à diversidade de expressões religiosas, que impediram uma influência direta sobre o Estado liberando às elites para exercerem o controle do poder sem precisar dividir.
Já o Brasil, desde o início foi um Estado Religioso sui generis. A Igreja Católica até a República, era subordinada ao Estado, que escolhia Bispos(e não Roma), abria dioceses, pagava o salário aos sacerdotes, e concomitantemente exercia sua "proteção". De fato, somente com a República a Igreja Católica libertou-se da influência do Estado, e cresceu.
Mas não poucas vezes houve conflito entre a Igreja e o Estado, como na expulsão dos jesuítas do Brasil e a destruição dos 7 povos das missões, a escolha de bispos contrários ao celibato, pelo Estado, como foi no caso do Rio de Janeiro, durante o período de Regência. O próprio Feijó, que era padre, comandava o país e, divergindo de Roma, escolhia Bispos a seu bel prazer. Era complicado. Mas havia também os Freis Canecas da época, que se sensibilizavam com os problemas do povo e engajavam-se nas grandes lutas de seu tempo.
Arrisco-me a afirmar que pertence aos planos do império, tornar o Brasil uma nação multi-religiosa, como na matriz. A influência americana em um sem número de novas Igrejas, com pastores americanos em tradução simultânea, busca substituir as lutas sociais, resolvem eles mesmos os problemas, através de processos fanáticos, da pobreza, do desemprego, e curas. Abrem um novo horizonte de relações com o Estado. Já possuem uma bancada evangélica, e nutrem o sonho de fazer do país uma nação evangélica, religiosa, como vemos no oriente médio.
De quebra, para apimentar um pouco mais a análise, vejo o mundo envolvido em duas dimensões bem distintas: o ocidente cristão, democrático e tecnológico, de cunho capitalismta, e o oriente, com o islamismo em crescimento (já são a segunda religião na Europa), de cunho autoritário, e popular. É um pêndulo que vem e vai desde a antiguidade, atravessando a idade média, e voltando com mais força nos dias de hoje.
O império quer lançar mão de uma nova cruzada, agora de matiz evangélico, e o oriente médio responde ferozmente, perseguindo qualquer expressão de cristianismo. A guerra contra grupos fundamentalistas está se generalizando, e a qualquer momento pode sim haver uma ampliação destes confrontos, com a possibilidade de conflitos de grandes proporções, porque não dizer atômicos.
É uma possibilidade real que deve fazer os pacifistas do mundo levantarem suas vozes bem alto, para dizer que os povos não devem pagar a conta destas loucuras, e que desejam viver em paz.
Podemos apoiar as novas relações do Brasil com o mundo, mas não podemos abdicar de nossa visão pacífica, de cunho popular, e com diálogo sobre todas as diferenças.
Que o apedrejamento seja banido do mundo do século XXI. e que as mulheres tenham seus direitos respeitados, não podendo ser responsabilizadas enquanto os homens saem incólumes destas sociedades patriarcais, escondidas em burcas, sem liberdade a ir e vir sozinhas em seus países.
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