A EXPERIÊNCIA DO DESERTO -texto de frei Petrônio de Miranda.

A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO DESERTO

























Muita coisa tem sido dita sobre deserto espiritual no nosso meio, 
mesmo assim fica a dúvida sobre o lugar dessa experiência na
 vida cristã. O deserto é uma exceção na vida com Deus ou algo
 que todos teremos de passar? Antes de responder esta 
pergunta, vamos olhar o deserto na Bíblia: não foram poucos
 os personagens bíblicos que passaram pela experiência de 
Deus no deserto, muitos homens e mulheres viveram a 
terrível sensação de ausência ou do silêncio de Deus: 
Elias viveu a amargura do medo e da frustração no deserto;
 Moisés passou 40 anos acreditando que nada mais iria 
acontecer na sua trajetória como libertador; Jó viveu na 
carne a experiência de se sentir abandonado por Deus; e Jesus, 
do alto da cruz, deu um brado: “Deus meu, Deus meu, por 
que me desamparaste?”. Além desses relatos, na nossa própria
 caminhada cristã, passamos, muitas vezes, por essa sensação de
 abandono, perdemos o sabor da vida, o que nos alegrava passa
 a não alegrar mais, a música, o sermão, a leitura da palavra
 e a oração, tudo parece sem sentido e estafante. Esses 
sintomas podem surgir em vários momentos da nossa vida, 
talvez por causa do cansaço físico e mental, uma doença, o 
fim de um relacionamento amoroso, estresse e tantos outros
 motivos. Mas o deserto espiritual tem algumas particularidades.
Na solidão do deserto o nosso coração de pedra se transforma

 em carne, o coração fechado se abre a todos os sofredores 
num gesto de amor e solidariedade . Mas, olhando de longe 
os inúmeros acontecimentos que atingem uma pessoa no 
deserto, sentimo-nos compelidos a fugir dele. Vivemos com 
se nenhum mal fosse nos atingir, e incorporamos palavras de
 ordem, que dizem: “somos filhos do Rei”, “ora que melhora”
, e falamos com a força dos nossos pulmões: “tudo posso 
naquele que me fortalece”. Nada disso é mentira, no entanto,
 quando nos vemos em apuros, essas frases passam a não 
fazer mais sentido e algumas coisas acontecem: ou nos sentimos
 abandonados por Deus ou pensamos que os nossos pecados
 nos afastaram dele. Lembremos de Jó: não foi o seu pecado 
o responsável pelo seu sofrimento. Mas parece que a experiência
 do patriarca nos traz ainda mais angústias: não nos sentimos
 à altura dele e por isso achamos que todo o nosso sofrimento
 é resultado dos nossos pecados. Perguntamo-nos: onde eu 
errei? O que eu fiz para merecer tamanho castigo? Sentimo-nos
 abandonados. Achamos que nos perdemos de Deus e que já
 não somos mais objeto do seu amor.
Queremos viver somente alegrias, mas não podemos 
evitar, quando menos esperamos experimentamos uma aridez
 espiritual e concluímos que o que está nos acontecendo é o 
que muitos chamam de deserto. Os pais do deserto, 
pelo menos, fizeram esta escolha livremente, mas a nós parece
 que essa opção não é dada. Para os contemplativos, no entanto,
 a experiência do deserto deve ser recebida com agrado, do 
mesmo modo que uma pessoa enferma receberia com bons 
olhos a noticia de uma cirurgia que promete saúde e bem-estar
Isso não que dizer que o cristão deva ser alguém que sai pelo 
mundo em busca do desprazer e de desgraças, não é sobre 
isso que estamos falamos. O que queremos dizer é que 
na caminhada com Deus vamos experimentar sensações de abandono,
 dores e fracassos, e isso não tem nada a ver com os nossos 
pecados. Não foi assim com Ana, Jó, Paulo e tantos outros? 

Mas, como conciliar o deserto com um conceito de espiritualidade
 que não tem lugar para dor e o sofrimento? Como conciliar a 
imagem de uma vida próspera e abençoada com a experiência 
do silêncio de Deus?
Na vida contemplativa, o deserto sempre teve o seu lugar. Nos
 primeiros séculos da Era Cristã, muitos homens e mulheres 
foram literalmente para o deserto em busca de um encontro 
com Deus através da solidão, do silêncio e da oração. Antão,
 Agatão, Macário, Poemem, Teodora, Sara e Sinclética foram
 líderes espirituais no deserto . “Sem esse deserto, perdemos nossa
 alma enquanto pregamos o evangelho”. Todos os contemplativos
 viveram a realidade do Deus Absconditus*, mas foi João da Cruz, 
monge carmelita do século XVI, quem desenvolveu uma tradição
 contemplativa sobre a noite escura da alma, ou noite dos sentidos. 
Quando vires teus desejos apagados, tuas afeições na 
aridez e angústias, e tuas faculdades incapazes de qualquer 
exercício interior, não sofras por isso; considera-te feliz por 
estares assim. É Deus que te vai livrando de ti mesmo, e 
tirando-te das mãos todas as coisas que possuis.
Na noite dos sentidos, somos convidados a sermos todos de Deus.
 Nesta vida, homem não se une a Deus por meio daquilo que 
entende, goza ou imagina, nem por alguma coisa que 
os sentidos ofereçam; mas unicamente pela fé.... Somos 
chamados a experimentar o silêncio de amor, a nos calarmos
 diante do inefável, e a pormos a atenção amorosamente
 em Deus, sem ambição de querer sentir ou entender 
coisa alguma particular a seu respeito. Na noite escura dos 
sentidos, somos convidados à comunhão da dor de Cristo. 
De acordo com o teólogo alemão Jürgen Moltmann, no centro 
da fé cristã está a história da Paixão de Cristo. No centro dessa 
paixão está a experiência de Cristo abandonado por Deus. Pare 
ele, ou isso representa a ruína da fé humana no criador, ou o 
surgimento de uma Fé em Deus que não é possível de ser destruída
 por nada. Não mais uma fé que dependa de resultados, de sentir 
calafrios, que dependa da emoção, não mais uma fé que
 precisa de formulações inquestionáveis, mas uma fé descansada,
 porque o amor não cansa e nem se cansa. Uma fé que se abandona
 nas mãos de Deus e se deixa levar por ele. A experiência de Deus
 no deserto é a experiência do despojamento que nos leva a amar a 
Deus sobre todas as coisas, mesmo diante da dor e do sofrimento.
 Por que Deus permite o sofrimento não sabemos, mas, para
 Multmann, mesmo que soubéssemos isso não nos ajudaria a 
viver. Se descobrirmos, no entanto, onde está Deus e experimentarmos
 sua presença no nosso sofrer, encontrar-nos-emos na fonte de onde 
brota a vida novamente.
O sofrimento e a dor não devem ser entendidos, neste sentido, 
como resultado do nosso afastamento de Deus, muito pelo 
contrário, podemos nos sentir amados mesmo diante da dor e da 
aflição. Mas é muito difícil perceber o amor de Deus diante do 
sofrimento e da aridez espiritual, porque estamos comprometidos
 com uma falsa ilusão do que seja esse amor por nós. Coisificamos
 o nosso amor por Deus, só nos sentimos amados quando a nossa
 vontade é satisfeita. Se as nossas orações não são respondidas,
 pensamos que Deus não nos ama. Se não nos emocionamos no
 culto é porque falta unção, dependemos dos resultados para 
experimentamos Deus. No deserto, somos privados de tudo, dos
 resultados e da emoção, só restam dúvidas, é aí, que o conceito 
de Hebreus, começa a fazer sentido, a Fé é o firme fundamento das
 coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem
 (Hebreus 11:1). Na noite escura, ficamos livres da nossa excessiva
 dependência de resultados interiores e exteriores, lá nada 
acontece, . Na noite escura, aprendemos a amar a Deus por 
ele mesmo, não por=só Deus basta aquilo que ele pode fazer
 ou deixar de fazer por nós. Lá, nada faz sentido, e é no sem
 sentido que encontramos a verdadeira paz. Profunda é a luta 
na noite contemplativa, mas é igualmente muito profunda a 
paz que se espera. E, se a dor espiritual é intima e 
penetrante, o amor que se há de alcançar é também íntimo e puro.
Nesta noite escura, aprendemos a nos despojar de uma falsa imagem
 de Deus, o Deus que era o nosso provedor, passa ser também 
o consolador, o Deus que servia apenas de alívio para as nossas 
neuroses do cotidiano, passa ser o nosso companheiro de amor.
 Na noite escura, tudo muda. Aqui temos um verdadeiro encontro
 de amor, onde nada mais é importante. Se formos abandonados,
 amamos assim mesmo, se nossas orações não são respondidas, 
não deixamos de amar por causa disso. Nesta noite dos sentidos, 
mesmo sem sentir, somos transformados. O progresso da 
pessoa é maior quando ela caminha às escuras e sem saber. 
Aprendemos a amar a Deus como ele deseja ser amado. É amar 
sem querer possuir o objeto do nosso amor, é amar sem reduzir
 a Deus a uma idéia ou a uma lâmpada de Aladim. É amar uma
 pessoa, que misteriosamente é três.
Sobre a pergunta: o Deserto é uma exceção na vida com Deus 
ou algo que todos teremos de passar? Podemos respondê-la da
 seguinte maneira: talvez, nem todos os cristãos passem pelo 
deserto, mas todos aqueles que passarem irão experimentar a 
purificação dos sentidos. Para a pessoa crescer na contemplação
 até chegar á união com Deus, deverão ficar de lado, em 
silêncio, todos os meios e exercícios sensíveis das faculdades
 humanas. Só assim poderá o Senhor infundir nelas o 
sobrenatural, pois a capacidade natural não consegue chegar
 tão alto. Aqui entendemos que só podemos encontrar Deus
 no silêncio, na solidão e na oração. O nosso objeto de desejo
 é livre para ir e vir, quando desejar. Não ficamos tão dependentes
 de sentir a sua presença. Já sabemos onde ele está.



frei Petrônio de Miranda.

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