O PERU DO NATAL

Deixo para os leitores do Pó das estradas este conto de Natal

Num apartamento localizado na Barra Funda, São Paulo, aproximadamente às 21h30min da noite de Natal de 2011, estando reunida a família em volta da mesa, com as crianças impacientes por abrir os presentes depois da ceia, ouve do avô que aguardem um pouco mais, pois deseja contar-lhes uma pequena história, que passo a vocês também, meus leitores: a história do PERÚ DO NATAL.
- Esta é uma história que há muito tempo guardo no fundo do meu coração. - diz o avô - Dela tirei muitas lições de vida, por isso peço que se acalmem um pouquinho, e fiquem perto de mim, para me ouvirem bem. É a história de um peru de estimação. Mas, primeiro comecemos pelo nascimento do personagem principal, o Pereirinha.
Quando Luiz Pereira nasceu, o Pereirinha, como lhe chamavam em sua terra, os dias eram longos e tudo durava muito, diferente de hoje, em que não se tem mais tempo para nada .  
Foi num vilarejo chamado Artêmis, um bairro rural de Piracicaba, em São Paulo, onde a vida era tranqüila e monótona: jogar no campinho de futebol, nadar e pescar no córrego, trepar nas árvores para comer goiaba ou jabuticaba, e chupar laranjas pelas tardes afora.
- Vovô, que diferença as coisas que se fazia antigamente, com o que fazemos hoje. – disse um dos netos
- É verdade Carlinhos, não existiam vídeo games, internet, ou coisa do gênero. Cada tempo com sua verdade. Eram os idos de 1970, e o Brasil passava por um período de trevas, com perseguições e mortes. Nada disto, porém, afetava a tranqüila vida de Artêmis.
Nascera numa casa, com ajuda da parteira, com um grande jardim de frente, dois quartos, sala, cozinha e banheiro, quintal comprido terminando num muro, com o mato do outro lado. Este foi local onde Pereirinha nasceu e passou sua infância. No fundo da casa, seu pai plantava algumas verduras para o consumo diário, e mantinha uma pequena criação de galinhas.
Em Artêmis as paisagens repousavam como pinturas nos quadros. Havia o perigo, mas de outro tipo: picadas de cobras, aranhas, medo de fantasmas, almas penadas, morcegos, nada como nos dias atuais, com o mal barbarizado, que nem merece ser citado.
O lugarejo era praticamente uma rua onde todos se conheciam: a vendinha do Seu Luiz, com o caderneta de conta, o açougue da Antônia, moça de braço forte no uso da machadinha, a barbearia do Pedro, a Escola Municipal, da Dona Mariazinha, a diretora.
Os demais trabalhavam na sua roça, ou por empreitada. Dona Sebastiana, a Tiana, sua mãe, mulher prendada, cuidava da casa, lavando e passando roupas, fazendo a comida para o Seu João, seu marido, que tinha um pedaço de terra arrendado.
Quando ficou grávida do Pereirinha, o primeiro filho, foi uma festa.
Ali, como de costume, o festejo era compartilhado por todos. Um trazia o salgado, outro um bolo de fubá, ou de milho, assim juntavam tudo, punham sobre a mesa, e sentavam-se para prosear enquanto comiam.
Ficavam de conversa ao relento da tarde, terminando cedo, porque dormiam todos com as galinhas, não havia muito que se fazer à noite. Foi assim quando Tiana engravidou, parou o lugarejo, festão.
Depois, João correu na cidade, e comprou um filhote de peru, um peruzinho, “prá se alembrá”, como diz o caipira, daquela data, ou para assar, quando nascesse o bebê. Sabia que o povo ia se reunir de novo, homem precavido.
Barriga crescendo, João arando, assim passou o tempo. Nas vésperas do nascimento, João voltava mais cedo da lavoura, preocupado, deixando sempre a Bércia, a parteira, de sobreaviso. 
Ah, o peruzinho também ia crescendo. Estava perdendo as suas penugens, já com algumas pequenas penas. Ainda não crescera o esperado, sendo criado meio solto, longe das galinhas.
Passeava pelo quintal, entrava de vez em quando na casa, pela cozinha, filando com a Tiana algo para comer, que ela jogava. João não tirava o olho dele, vendo-o ganhar peso. Pensava no dia em que iria matá-lo para a festa.
Mas, coisa estranha, bastava o peruzinho ver João, e corria em sua direção enroscando-se entre as suas pernas, de alegria. Tanto, ao longo do tempo, ele foi tomando tal apreço pelo bichinho, que logo se afeiçoou de vez. 
Já não pensava mais em sacrificar, para comemorar o nascimento. Assim, quando Pereirinha nasceu, em fevereiro de 1971, existia um peruzinho de estimação que o acompanharia durante boa parte de sua infância.
Pereirinha nasceu de parto normal, chorando forte. Bércia fizera um belo parto; lógico, contando com o esforço de Tiana. Ao nascer, Mariazinha, diretora da escola, amiga que acompanhara tudo de perto, fez um café forte, e o deu a Tiana para beber. Esta, repleta de alegria, após uns goles, entornou devagarzinho o café na boca de Pereirinha, para que bebesse aos golinhos.
Foi assim, que Pereirinha tomou sua primeira refeição, em vez de mamar do leite materno, café. As visitas da semana para o menino, fizeram parte do noticiário de Artêmis, onde parecia que a vida não passava.
É difícil calcular, com os olhos voltados nos tempos de hoje, o que significava a paz e a harmonia daquele lugarejo afastado. Silêncio para pensar na vida após o jantar, tempo para conversar sobre assuntos corriqueiros, naturalidade em oferecer produtos entre uns e outros.
Aos domingos, a maioria ia à missa. Vinha um padre da cidade, com hora marcada, para a capelinha de Nossa Senhora de Aparecida, devoção local.
Depois, os homens jogavam Bocha, gritando e fazendo troças entre si, enquanto as mulheres proseavam preparando a refeição. Ao final da tarde, jogavam futebol de campo, com camisa de time, torcida e tudo, até o sol se por.
Da primeira vez que João e Tiana saíram à rua com o menino, todos acharam graça. Atrás, seguindo-os, como se fosse da família, ia o peruzinho acompanhando os três.
Não comentavam na frente, para não desagradar, mas era motivo de riso geral, ver o animalzinho seguindo seus passos, com a maior tranqüilidade.
Era um peru de estimação.
O tempo transcorreu, Pereirinha foi crescendo, tendo como companheiro aquele bichinho. Aos cinco anos, Pereirinha permanecia boa parte do dia em casa. Como o peru conquistara o direito de ir até a cozinha e vivia solto no quintal, ambos passavam grande parte do dia juntos, Pereirinha e o peru. 
Quando ficavam distantes, o menino assoviava para ouvir o glugluglu, e localizar seu amigo. De outro lado, era só o peru ver o Pereirinha, e pronto, se enchia todo com as penas e ficava a rodar e rodar, de contente.
Foi tanta amizade, que começaram os ciúmes. Chegava visita, e ninguém podia aproximar-se do menino, que o peru ficava bravo, e bicava. Só os pais conseguiam colocar o menino no colo, mais ninguém. Tornou-se mesmo um incômodo esta ciumeira toda, com o peru botando banca, todo estufado e bicando os intrusos.
Aproximava-se o Natal de 1976. O Brasil ainda vivia tempos sombrios de repressão política e falta de liberdades, embora o movimento social pelo retorno da democracia já mostrasse sinais de vida.
Menos em Artêmis, onde esta realidade parecia não existir. Lá continuava aquela vida pacata, voltada para si mesma. Ouvia-se uma conversa que na cidade, em Piracicaba, a vida estava mais difícil, e que ocorreram conflitos entre estudantes e policiais, uma confusão mesmo. Estranharam até em Artêmis quando alguns jovens, filhos das famílias locais, mudaram-se para São Paulo. Disseram buscar oportunidade de trabalho, que um pedaço de terra para tanta gente era insuficiente. Também, queriam conhecer novidades, coisas novas, que não encontravam naquele lugar distante.
Nada que alterasse substancialmente a vida local, mas preocupava, esse esvaziamento.
João e Tiana não ligavam para isto, e mantinham suas rotinas, de modo que preocupações à parte, seguiam em frente. Pereirinha, não largava da saia de sua mãe por onde ela fosse, e o peru atrás.
Era dezembro, e como de hábito nestas épocas, Tiana saía para fazer algumas compras na cidade, preparando os presentes e separando alimentos para a grande ocasião do Natal.
A Missa do Galo em Artêmis, seguia um ritual da época, realizada mais à noite, com tempo apenas para voltar e fazer a ceia em casa com os familiares e amigos, diferente de hoje, que se celebra mais cedo, ou não se vai.
Por duas vezes ela foi a Piracicaba comprar tecidos para presentear parentes que viriam de fora, e pegar alguns ingredientes que não tinham na vendinha do Seu Luiz, para não faltar na hora.
Ademais, faria um leitão assado, uma carne de panela, com um arroz e farofa de castanha. Tiana não assava galinha, porque acreditava que ciscavam para trás, e era de mau agouro. Peru, nem pensar, em respeito ao amigo de Pereirinha.
Todos os preparativos estavam bem encaminhados, pelo dia 23 de dezembro, com a proximidade do Natal. João reduzira seu trabalho na lavoura, e Tiana ajeitava o presépio junto da árvore de Natal, tudo muito simples.
Quando chegou a noite do dia 24 para 25, arrumaram-se para a Missa do Galo, que àquele ano seria celebrada às 21h00min. Ao entrarem no quarto de Pereirinha para aprontá-lo, eis que dormia profundamente sobre sua cama.
Com pena de acordá-lo, arrumaram-no jeitosamente, sabendo que estariam apenas 01h30min longe de casa. Ao voltarem, seria acordado e celebrariam a festa juntos. Fizeram tudo sem barulho, saindo silenciosamente de casa, até a capela de Nossa Senhora de Aparecida.
Esqueceram-se, entretanto, de fechar a porta da cozinha, que dava para o quintal. Enquanto estavam fora, entrou por uma brecha do quintal, uma cobra jararaca, venenosa, que foi se arrastando até a cozinha, e em direção ao quarto onde estava Pereirinha dormindo. Não sabia ela, que do lado de dentro, velando ao lado do menino que dormia, estava o peru, seu fiel companheiro.
Ao pressentir o perigo, o peru se encheu de coragem, e pôs-se entre a serpente e a criança. Ocorreu um luta feroz; de um lado a serpente lançava botes sobre o peru, que por seu lado, rodeava a serpente, procurando bicar sua cabeça.
Num destes ataques, a jararaca picou-lhe a coxa, ferindo-o mortalmente. Com o veneno já fazendo efeito, o peru reuniu a sua última energia, avançou decididamente sobre a cobra, e golpeando-a por duas vezes na cabeça acabou por matá-la. Em seguida, desfaleceu.
Quando João e Tiana voltaram da missa, assistiram horrorizados a triste cena do peru morto, junto à cabeça estraçalhada da jararaca, aos pés da cama de Pereirinha, que continuava dormindo, como se nada tivesse acontecido. Concluíram que o peru protegera seu filho da morte.
Naquela noite não o acordaram. Jogaram fora a cobra morta, envolveram o peru num pano e o enterraram.
Lembraram-se do livro de Gênesis, onde Deus diz que a serpente picaria o calcanhar da mulher, mas que teria a cabeça esmagada por ela, e agradeceram a intercessão da Virgem Maria, Nossa Senhora de Aparecida, pela proteção da vida do Pereirinha.
Decidiram, ali mesmo, em oração, organizar uma excursão, no ano seguinte, à cidade de Aparecida, para agradecer a Deus.
Pela manhã, ao acordar, o menino assoviou, sem resposta, chamando o peru. Levantou-se e foi até o quintal. Lá encontrou um triciclo que pedira ao Papai Noel, mas não lhe interessou. Queria saber por que o peru não respondia. Sua mãe aproximou-se, com os olhos cheios de lágrimas e disse.
- Filho, ontem quando fomos à Missa do Galo, te deixamos em casa, porque você dormia. Pensamos que um pouco de tempo longe não seria problema. Mas uma cobra venenosa entrou em casa, e podia te picar. O peru veio em sua defesa e matou a cobra. Mas como foi também picado, acabou morrendo.
- Onde ele está papai? – murmurou soluçando.
- Papai e mamãe prepararam um jeitinho dele ficar sempre conosco – disse-lhe seu pai - por isso, o enterramos no fundo do quintal, onde gostava de ficar.
Choraram muito, naquele dia 25 de dezembro de 1976, por causa do peru, que morrera na véspera. Mas também ficaram felizes por ter ele salvado seu filho.
Pereirinha nunca mais comeu carne de aves, em respeito ao peru de estimação, que o acompanhou na infância, e entregara sua vida pela do seu amiguinho.
Meus netinhos, eu sei que vocês devem estar um pouco tristes com esta história. O importante é saber que amizade não tem preço, e se um bichinho faz isto por nós, o que não dizer de Jesus, que entregou sua própria vida por todos nós, para que possamos encontrar alegria e salvação para nossas vidas.
Hoje comemoramos seu nascimento. ele não é maior que qualquer presente?
Contei esta história para vocês, para que fiquem sabendo que Jesus também foi perseguido por uma serpente, e que Ele, assim como o peru, é tão importante, que deve ser lembrado como membro da nossa família.
Jesus, como o peru de criação de Pereirinha, está sempre conosco, sente quando estamos bem ou quando passamos por perigo, e procura nos proteger.
Não sou contador de histórias, faço apenas o relato do que vi e ouvi.  Esta é a minha historinha, meus netos, a história do seu avô Pereira.
Sim, eu, o Luiz Pereira, o Pereirinha da história.
Nunca mais em minha vida comi carne de ave, de qualquer espécie, devido à lembrança do peru de estimação que papai comprou para festejar meu nascimento, e que guardo comigo, em meu coração até hoje.
Para terminar, sei que é difícil entenderem agora, mas saibam que Jesus ainda hoje se oferece por mim, e por vocês todos, meus filhos e netos, através de sua carne e de seu sangue, na hóstia e no vinho, consagrados.
Bem isto é mais difícil de ser entendido, e vale uma história muito maior a ser contada por vocês no futuro, a seus filhos.

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