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A alegria é gratúita

Sempre pensei que a alegria e a tristeza fossem sentimentos dependentes de nossas condições materiais.

Lógico, não com uma subordinação primária e condicional, mas com uma dependência de alguma forma vinculada, ainda que de uma maneira mais complexa.

Uma experiência singular, no entanto, colocou todo este edifício teórico por terra.

Foi na primeira semana de janeiro de 2011.

Como consultor de empresas, passo sempre um período mais ativo, administrando vários projetos, e outros, nem tanto, mais magros, onde o esforço por abrir novos serviços se torna uma urgência.

Pois bem, foi num tempo magro destes que fiz esta experiência que passo a lhes contar.

Buscava aqui e ali uma oportunidade abrir-se e nada.

Minha esposa segurava um serviço, além aposentadoria, de sorte que o estrago não era maior por isso.

Obrigou-nos no entanto, a fazer um redesenho do cardápio, adaptando-o aos novos tempos.

Isto lembrava-me Charles Chaplin no filme, se não me engano, "Em busca do ouro", quando ele fez parte de uma expedição que buscava ouro no polo norte, e acabaram, depois de algum tempo, sem recursos, e sem encontrar o ouro.

A uma certa altura, a fome era tanta, que Chaplin sacrificou sua bota, imaginando-a um apetitoso prato.

Cozida, foi comida como se fosse um galinácio.

Transformando a sola num filé e os pregos nos ossinhos que são chupados para se retirar os restos de carne, assim a bota foi sendo comida parte por parte.

Mas o seu companheiro não conseguiu fazer a mesma mentalização, e projetou, isto sim em Chaplin um galinácio, saindo em perseguição antropófaga ao cômico.

A lembrança deste filme era muito engraçada, e me fazia rir bastante.

Estava eu e Meg como Chaplin, fazendo das sobras das refeições passadas um "Restô d'ontê" francês, ou "Roscovo" russo, ou ainda o "Soborô" oriental.

Um encorajando o outro na ausência. E muita água, para hidratar.

Foi quando minha companheira leu na caixa de recados de seu celular, que ela era ganhadora de um Eco Sporte mais 25 mil reais, do programa do Gugu, do "Ano Novo Vida Nova", e deixava um telefone. Ela ligou-me do serviço, para que eu verificasse para ver o que era.

Liguei desconfiado, confesso, diante de tantos golpes que acontecem por aí.

Do outro lado atendeu um tal Sr. Luiz Carlos, Gerente de premiação da Record, que pediu o número de uma senha que tinha vindo no recado do celular.

Ao informar a senha, o Sr. Luiz confirmou que realmente eu , ou melhor minha esposa, havia ganho o prêmio, e disse:

Pode comemorar!

E passou a programar a entrega dos prêmios, informando que à partir daquele instante os auditores estavam ouvindo a conversa para confirmar a premiação, e a veracidade do contato.

Falou que providenciaria uma transportadora, ou se receberia diretamente na Record, Barra Funda, se quizesse, etc...a conversa foi de desenrolando cada vez mais efusiva, e alegre.

O carro poderia ser trocado por dinheiro, se quisesse, mas tinha que  ser decidido ali, na hora, com a escuta dos auditores.

Passei a acreditar, diante da extrema criatividade do tal Gerente Luiz Carlos.

Por fim, informou-me que deveria comparecer à televisão munido de um produto Nestlê, e dois cartões de telefones, sendo um de R$100,00, da Tim e outro a Oi, de mesmo valor.

Estes três produtos seriam dos patrocinadores da premiação, que deveriam estar presentes na hora da entrega.

Aí a estória foi ficando desencontrada.

Percebi logo golpe, ainda meio atordoado com a abordagem montada com tanta perfeição.

Notei que eles queriam o número dos cartões, que não deveriam ser usados, para que pudessem dar o golpe em outros trouxas como eu.

Desliguei o telefone entre a revolta com a jogada, e a vergonha de ter caído nisto, agora tão óbvio era o golpe para mim.

O interessante é que a armação toda durou aproximadamente uma meia hora, tempo em que ligava para minha esposa, em seu serviço, para combinarmos a cor do carro, e outras providências, até a descoberta funesta.

Farsa desmontada, fui buscar Meg no serviço, no final da tarde.

Quando nos encontramos, demos muitas gargalhadas a respeito de nossa burrice, nossa ignorância, nossa ingenuidade, nosso primarismo, e assim por diante.

Um fato, entretanto, ressaltou-se nisto tudo, o de que estivemos muito alegres nesta meia hora, imaginando o que faríamos com o dinheiro, para pagar dívidas, prestações, ajudar pessoas, etc.

Alegria gratúita, pois ainda não havia a premiação.

Como era um golpe, a alegria era inclusive infundada.

 Percebemos, no entanto, que podemos ficar alegres mesmo nas dificuldades, e até diante de uma armação daquelas.

Prefiro, assim, olhar o lado bom, e agradecer de todo o meu coração a este bandido, pela sua criatividade aparentando ser um grande gerente de vendas, que de fato poderia ser, tornando-se uma pessoa rica, sem ter de fazer o mal a outros.

Sim, este bandido golpista mostrou-nos como deixamos de ser felizes nas dificuldades, e como podemos ser felizes, mesmo sem nada.

No julgamento eterno, onde nada escapará de ser lembrado, para quem acredita, lógico, quero interceder com o meu perdão a este bandido, por me ter proporcionado momentos de alegria, que não percebia ter perdido.

Foi preciso um golpe destes, para revelar um lado bom de mim, esquecido nos acontecimentos difíceis da vida.

É, a alegria pode ser gratúita, despertada por sonhos, desde que se deixe sonhar, mas sem tanta ingenuidade, da próxima vez.


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