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Garimpando o passado. Memórias dos anos de chumbo




Sabem o que é isso, abaixo?(segue anexo)

 É o que faziam como os brasileiros patriotas no passado.

Arrumavam uma ficha, e enquadravam o cidadão.

Acabo de achar este documento a meu respeito. Foi produzido pelo antigo Deops.

Hoje parece coisa do passado, mas a sensação que deixa é de instabilidade, insegurança atual. Dá a impressão de estar presente. Vi muitos amigos e companheiros enlouquecerem. Faço memória da Bássia, colega do Depto de Ciências Sociais da USP, uma destas pessoas, grande amiga, grande inteligência.

O aparato repressor não foi destruído com o fim da ditadura, mas saiu de cena organizadamente.

Devo pesquisar o que tem neste prontuário e depois passo as informações no blog, mas sei que perdi empregos, vários.

Ah, sou destes brasileiros que não pediu indenização por perseguição política, pois fui à luta para a sobrevivência. Lembro-me, por causa disto, neste instante, de estar num churrasco, em casa do General Zerbini,com a presença de Assis Brasil.

Sabem quem foi Assis Brasil? Foi um grande gaúcho, gaúcho de brio.

Foi o ministro da Guerra de João Goulart. Lembro-me, como se fosse hoje, de Assis Brasil recitar Martin Fierro, poeta platino, de memória, enquanto preparava a carne.

Lutara na Revolução de 32 ao lado de São Paulo, ocasião em que fez amizade com Zerbini.

Lutaram juntos no Vale do Paraíba contra as forças federais. Passava as noites ouvindo suas histórias, regado a vinho tinto, na casa do velho General, fortalecendo minha coragem no exemplo de ambos, que riam muito do perigo.

Lembro-me desta passagem, porque, vim a saber depois de sua morte, que Assis Brasil, que conduziu Jango até o exílio no Uruguai, ao voltar, apresentou-se, foi preso e torturado no Rio de Janeiro.

Quando foi solto bem mais tarde , voltou ao Rio Grande. Um dia recebeu uma carta com a sua aposentadoria.

Ele a lacrou novamente, e a enviou de volta, dirigida ao Presidente Castelo Branco, primeiro Presidente do Período ditatorial, dizendo que se negava a receber este dinheiro, que se pegasse este dinheiro e que fosse usado para cuidar das crianças pobres do Brasil.

Este foi Assis Brasil.

Consta que morreu pobre, e honrado.

Como descobri este meu arquivo? Foi visitando o blog do Protógenes Queirós, que descobri que existe um arquivo histórico a respeito. 

A ficha foi feita quando tinha apenas 19 anos e fui preso numa pichação propondo o voto nulo, em plena avenida Francisco Matarazzo, já na dobra para a Lapa.

Eu estava dirigindo o carro, que estav estacinado, enquanto outros companheiros pichavam na parede.

Foi quando apareceu um carro de policia e o pessoal, com medo, veio para o meu carro com os spray nas mãos. fomos todos para uma delegacia da Lapa e de lá para o deops, onde passamos a noite.

Como era véspera de eleições, e ainda existiam alguns instrumentos democráticos, devia ser antes do AI-5, fomos soltos.

Após as eleições, tivemos que voltar e demos depoimentos do que fazíamos.

Tivemos que montar os depoimentos com um advogado de nome Dr. Marco Antônio, que mais tarde soubemos que também fora preso, em outras circunstâncias.

Agora que descobri este sinistroso documento, tenho muita curiosidade em saber o que consta dele.

Aparece também o nome de Luis Roberto Vieira de Jesus, um amigo de juventude, do bairro onde morávamos, Perdizes.

Após esta refrega, "Vieirinha", como era chamado desistiu de fazer esta caminhada libertária pelo povo e pelo país.

O movimento estudantil da época nos separou.

Mas antes destes problemas, andávamos juntos sempre, indo aos "bailinhos" de fim de semana no bairro.

Até arrumamos namoradas juntos, para continuarmos unidos.

Há uns dois anos redescobri onde anda o "Vieirinha". Hoje é o Professor Luis Roberto, em Belém do Pará.

Pelo pouco que troquei de idéias com ele, percebi que continua a mesma pessoa mansa e amiga.

Digo isto, porque existem outros que ficaram vaidosos e orgulhosos,  inflados como pavões, o que me frustra sobremaneira, porque vejo a vida como um progresso constante e não um regressso repugnante.

Mas vejam lá. Não me orgulho disto. Nem me envergonho. Lamento apenas pelo tempo perdido de minha geração, que poderia estar vivendo em liberdade, como hoje, e amando sem medida a vida.



Prontuário: 104700



Caixa: 131


Nome: JOÃO PAULO NAVES FERNANDES


Atividade: Não informada


Filiação: Solon Fernandes Sebastiana de Souza Neves Fernandes


Idade: 19


Nascimento: 9/8/1949


Sexo: Masculino


Nacionalidade: Brasileira


Naturalidade: Jose Bonofácio


Estado Civil: Solteiro


Profissão: Estudante


Residência: Rua Cardoso de Almeida, 1600 Rua João Ramalho nº 292- ap 61- Perdizes


Sindicalizado: Não


Histórico: Cópia de processo arquivada no prontuário nº 22.425, referente a Luiz Roberto Vieira de Jesus










Os originais dos documentos aqui identificados podem ser consultados no Arquivo


Público do Estado de São Paulo. Reproduções mediante assinatura do Termo de Compromisso.


Endereço: Av. Voluntários da Pátria, n. 596, 1º andar [Fundo DEOPS]. São Paulo/SP.


Que as gerações futuras colham frutos cada vez maiores de conquistas e liberdades, e este passado não seja mais que uma peça de múseu. É o que desejo sinceramente a todos.

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