O virus do Natal na Internet

Eu tenho vários amigos na Internet. Interessante que o termo amizade esteja hoje tão vinculado à Internet. Antigamente nos visitávamos mais, havia tempo para isto. Conhecíamos as suas famílias, pai e mãe. Quantas vezes “filei” um almoço ou um lanche da tarde em suas casas, e de última hora.

As visitas eram naturais e freqüentes. Não era necessário avisar que estávamos chegando. Apenas chegávamos. Freqüentar as casas, sair juntos para ir às festas ou aos cinemas do bairro era comum, rotineiro até.

Hoje não. Hoje não nos vemos mais. Todos foram ficando longe e, encontrá-los, bem, somente em grandes ocasiões, combinadas antecipadamente. Mantemos nossas alegrias e cultivamos a saudade, mas não é mais igual. Ficou difícil cultivar uma amizade.

Assim, a Internet goste você ou não, veio substituir esta relação mais pessoal, por outra, não tão próxima, fisicamente falando, mas até com uma pessoalidade diferente. É impressionante como apesar de juntos, evitamos abordar ou discutir tantas coisas, e, no entanto, quando distantes, exatamente resguardados por estar distantes, nos aventuramos a entrar em temas mais profundos, e porque não dizer, mais íntimos.

Por isto posso dizer que tenho muitos amigos na Internet. Alguns raramente se comunicam comigo, ou seja, quando precisam de informação ou ajuda, ou convidando para algum evento. O fato de contatar menos, não quer dizer que tenham menos estima por mim, e vice-versa. São, ao contrário, objetivos e diretos como por vezes gostaríamos que outros fossem.

Outros, gostam de bombardear com informações expressando suas opiniões, enquanto anexam arquivos os mais mirabolantes, de assuntos muito carregados de temas controversos, que me deixam mudo sem responder.

Porque qualquer resposta diferente de suas convicções é o início de um exílio auto-imposto, rompimento mesmo, por divergências de concepções de todos os tipos, difícil de endireitar.

Amigos de todos os tipos. Após um contato pessoal, passo os dias recebendo e-mails dele ou dela. Amigos de ocasião. E não param.

Como abro a minha caixa de entrada sempre ao final do dia, assim vou me alimentando e também enviando minhas mensagens. Afinal, eu também estou nesta tipologia internética, vamos dizer assim.

Sou daqueles de reservar assuntos que versam sobre acontecimentos diversos nem sempre presentes na mídia, que pertencem àquele lugarejo afastado ou a algum país distante, geralmente precedido de uma breve apresentação, porque não gosto de substituir o que está no arquivo. Também não me apraz fazer isto a todo instante, vou de tempos em tempos, comedido. Sei como é o povo.

Bem, foi neste contexto, que bem me lembro, aconteceu o vírus do natal. Num final de tarde, depois de chegar a casa, tomar meu banho e lanchar, ao abrir os e-mails do dia, veio misturado entre eles, um bem estranho, com os dizeres NATAL NA INTERNET.

Não sou de abrir e-mail desconhecido, porque já perdi muitos arquivos com este problema, mas aquele me chamou a atenção. Como aconteceria um Natal na Internet, uma vez que, já estamos todos muito virtuais em nossas relações?

Arrisquei, e qual foi minha surpresa ao ler o seguinte recado:

- Você foi escolhido para participar do Natal de Belém. Está tudo preparado, não é necessário levar nada. Antes, porém, faça um bom exame de consciência, e procure arrepender-se sinceramente das coisas erradas que você fez até hoje. Assinado – João Batista.

Ao lê-lo, minha primeira reação foi querer deletar, pois pensei tratar-se de um vírus que poderia destruir todo o meu notebook. Mas seria tarde, e minha curiosidade era maior. Respondi que não via em mim uma pessoa pecadora para poder arrepender-me de algo. Procurei saber também como se daria esta participação no Natal de Belém.

Fui dormir. A noite estava avançando e o cansaço me pesava os olhos. Aquela foi uma noite em cine 35 mm, tridimensional: Veio em seqüência ordenada, toda a minha vida, desde a infância. Foram aparecendo, um a um, os acontecimentos, desvendando meus erros aqui e ali, junto a muitas realizações.

Pela manhã, ao acordar, pude peneirar as coisas boas de um lado, e a más, de outro. Não me dei conta da relação entre a mensagem recebida e o sonho, ou o que fosse. Fui trabalhar como consultor num cliente, e durante o dia pude ir fazendo a associação entre um fato e outro, aumentando minha expectativa.

À noite, a curiosidade crescera, e revendo criticamente os meus erros, pensei em responder àquele tal de João Batista – que podia ser a brincadeira de alguém. Tomei a iniciativa de relacionar os erros, mas pensei no ridículo daquilo, caso alguém tivesse acesso, ou fosse mesmo um trote de alguém disposto a me prejudicar.

A verdade é que aquela revisão geral me fizera sentir melhor. Percebi que alguns de meus erros eu tinha superado, outros ainda me assombravam, e com eles mantinha uma batalha. Havia, entretanto, uma leveza de alma, da qual não me lembrava ter senão em minha juventude, quando das missas de domingo.

Qual não foi minha surpresa, quando percebi, novamente outra mensagem colocada – NATAL NA INTERNET.

- Agora, que conseguiu vencer seu interior, você pode caminhar por novos provedores superiores. Antes, porém, vá até a cozinha, encha um copo com água e a despeje sobre sua cabeça, como sinal de remissão dos seus pecados. Assinado – João Batista.

Beirava ao ridículo. Como uma pessoa, em sua solidão doméstica, faria aquilo, derramar água sobre sua própria cabeça? Estava ficando louco, imaginei. Lembrei-me de tanta gente que assiste TV, em atitudes semelhantes, que sempre critiquei, por achar medíocre. Agora, lá estava eu fazendo a mesma coisa.

Bem, não custava nada. Fui até a pia, enchi um copo com água e a derramei sobre a minha cabeça. Tive a noite dos justos. Uma paz indescritível tomou conta de mim. Como tomasse um banho interior, senti-me lavado. Estava quite com o passado.

Ao amanhecer, compreendera que muito de meus erros não conseguiria corrigir, encontrando as pessoas afetadas, porque já não estavam mais entre os convivas. Percebi, entretanto, uma vontade de fazer algo que pudesse compensar estas falhas, e que este era um sentimento justo. Àqueles outros, que tinham a oportunidade de ser corrigidos, tomei a firme iniciativa de fazê-lo.

Desta forma meu dia foi diferente dos demais. Surgira uma alegria leve por trás de meu comportamento, que me surpreendia também, como se fosse meio exterior, mas era minha, vai entender...

Estava também mais em paz comigo mesmo, eu tantas vezes sujeito às circunstâncias, com uma suavidade nova em mim, ao tratar dos meus afazeres. Tudo meio surpreendendo, meio aceitando.

Era eu e não era eu. Lembrei-me de Shakespeare – Ser ou não ser. Em minhas meditações considerei estas mudanças como um interagir de minha vida com uma dimensão espiritual.

Já não pensava mais em João Batista como um intruso, mas a um amigo novo, que veio numa hora propícia ao meu entendimento. Por isso, a espera da noite, em abrir minhas correspondências nas internet tornou-se uma ansiedade agradável.

Desta vez a mensagem veio diferente:

- Qual é o seu ouro para ser oferecido? O seu incenso está aceso? Quanto de entrega de sua vida está para ser perfumado pela mirra? Assinado-Belchior

A brincadeira assumia novas proporções, pensei, mas vamos lá. Respondi que não tinha grandes riquezas. Na verdade minha vida era até modesta, portanto não tinha muitas posses a oferecer. Quanto ao incenso, disse não ser uma pessoa dada a orações, sendo pouco metódico em buscar a Deus. Em relação à mirra, não me via entregando algo de essencial de mim, por isso não via sentido em ser ungido por mirra.

Recebi uma resposta em seguida. Neste, Belchior foi lacônico.

- Você resolveu o seu passado. Cabe fazer o seu futuro. Desperta! Urge que faças a tua parte.

Este vírus tem me acompanhado em tudo que faço. Coloca-me constantemente novos desafios, mostra meus limites, questiona. Lembrou-me de minha humanidade tão grande, perdida em egoísmos.

Descobri mais, que não estou só, que tenho um papel importante em casa, meu bairro, cidade, em tudo. Não devo mais estar fechado.

Agora sei qual é o caminho para o Natal de Belém. Tudo está preparado, esperando por um nascimento em mim, pela minha parte, mais nada.

O mais intrigante é saber que fui descoberto ou escolhido, como quiserem, no meio da Internet.

Ninguém acreditará em mim. Não faz mal.

Um vírus bom, para o bem.

Um conto meu para vocês. João Paulo Naves Fernandes. Concedo o direito de divulgação sem ônus, desde que divulguem o blog
http://www.podasestradas.blogspot.com/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Soneto de Dom Pedro Casaldáliga

UM CORPO ESTENDIDO NO CHÃO

Homenagem a frei Giorgio Callegari, o "Pippo".