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Adolfo e o Deus Negro



Adolfo estava de partida, cansado da vida.

Ele que tudo quisera, agora colhia derrota sobre derrota.

Desejara um mundo como uma ordem unida constante.

Todos marchando ao mesmo tempo.

Não podiam fazer outra coisa senão marchar e marchar.

Acordar! Levantar! Caminhar! Um, dois! Um, dois!

Assim seria o mundo em suas mãos.

Mas um suicido, após sobreviver a 42 atentados, retirou o desprazer de uma prisão ou de um fuzilamento como derradeiro momento na Terra.

Preservara por décadas sua raça ariana da maldição dos livros e dos judeus, dos ciganos e dos comunistas.

Agora, era tarde demais.

Aquela raça escolhida, de cútis branca e olhos azuis, como os anjos do céu, em sua despedida seria apreciada apenas no alto céu.

Com uma cápsula de cianureto, ou um tiro no peito, não importa, despediu-se.

O corpo desapareceu no meio às cinzas de uma fogueira.

O choque foi abrupto.

A luz, repentinamente, apagou-se.

Estranhamente continuava consciente, mas desprovido de vontade própria.

Continuava a pensar, e a observar, em sua mente sem poder exercer qualquer ação.

Sem saber como ou onde, viu-se em uma viagem por uma luz fortíssima que ia se dissipando, enquanto adentrava na mais profunda escuridão do universo.

Quando se deu conta de onde estava, pode contemplar toda uma multidão, conforme ia acostumando àquela visão noturna.

Não era possível saber de que cores eles eram.

Apenas que ali permaneciam.

Pareciam estar voltados para uma elevação.

Um coro de missa luba ecoava ao som de centenas de vozes, e instrumentos de percussão celestiais, e chocalhos.

O barrido dos elefantes e os rugidos de leões acompanhavam o coro, em ecologia celeste.

Assustou-se por não poder distinguir no escuro as fisionomias, e quem estava no topo do monte.

Aprumando os olhos da mente viu um grande trono no topo da montanha, feito de tecidos trançados com cores fortes, de vermelho e azul.

Haviam duas pessoas sentadas no trono, e lugar para mais gente que quisesse ali se ficar.

Em seu pensamento, imaginou que alguém o estivesse chamando:

- Adolfo! Adolfo! O escuro nos torna igual. Apresente-se!

Foi quando reparou que um homem da cor do mais profundo universo o chamava, do alto daquele trono.

Vestia uma tanga feita de pêlo de leões, e uma coroa de dentes de chita rodeava-lhe a cabeça.

Disse-lhe a Pessoa:

-Adolfo! eu criei a luz, porque antes havia a escuridão. Quantas vezes perguntei-lhe onde estavas e te fazias de surdo. Quantas vezes perguntei-lhe o que fazias, e me ignoravas. Esta multidão vem de várias partes do mundo. Estão cheios de uma luz que não se vê, senão através dos olhos. Fazem parte dos vários povos que sofreram em tuas mãos. Outros aqui ainda chegarão com as mesmas feridas deixadas por ti. Terás, portanto que esperar.

Adolfo percebia várias tonalidades de negro, e que o branco, só era branco por causa do contraste com o negro. Não havia nenhum branco onde se encontrava, apenas ele.

- Como se pode entrar se não se fez por entrar?

A voz continuou!
- A justiça vos será feita, conforme os critérios que estabeleceste aos povos que oprimiste.

- Há um acerto a ser feito para os vários erros.

Uma claridade com um calor insuportável rompeu por debaixo de um mar de esmeraldas e arrancou Adolfo daquele estado de mansa escuridão.

Um coro beneditino entoava cânticos de louvores, enquanto uma multidão negra gritava a uma só voz:

Caiu a Babilônia!

Caiu a Babilônia!

Agora a negritude resgatara sua identidade, e o Deus negro finalmente pode ser descoberto para sempre!

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