Pular para o conteúdo principal

Frei Betto: Lula e Dilma foram "governo social-popular desenvolvimentista"

"O governo do PT só pode ser considerado de 'esquerda' se comparado ao reacionarismo das forças políticas que lhe fazem oposição"

20/01/2014
Por Carlos Miguélez Monroy
Publicada no IHU
“Helvecio, a vida supera a ficção”, dizia a dedicatória que Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, escreveu ao diretor de cinema Helvecio Ratton, quando lhe deu um exemplar do livro Batismo de sangue. O diretor aceitou o desafio e em 2006 as salas dos cinemas exibiram pela primeira vez esta arrepiante história da repressão feita pela ditadura militar no Brasil. Os corpos torturados nesta história pertencem a frades dominicanos que, como Frei Betto, lutaram contra a ditadura.
Publicou mais de 50 obras sobre diferentes temas, embora se note sua obsessão pela justiça social e pelos direitos humanos. Para Frei Betto, ser de esquerda significa “optar pelos pobres, indignar-se perante a exclusão social, inconformar-se com todas as formas de injustiça ou, como dizia Bobbio, considerar a desigualdade social uma aberração. Ser de direita é tolerar injustiças, pôr os imperativos do mercado por cima dos direitos humanos, encarar a pobreza como falta incurável, acreditar que existem pessoas e povos superiores aos outros”.
Trabalhou no programa Fome Zero do governo de Luis Inácio Lula da Silva, como explica nesta entrevista, até este ser suprimido para a criação do Bolsa Família, um programa de subsídio direto às famílias.
A entrevista é de Carlos Miguélez Monroy, jornalista espanhol e mexicano, e publicada por HemisferioZero, 13-01-2014.  A tradução portuguesa é publicada no blog do jornalista.
Eis a entrevista.
O senhor disse num artigo que é hora de as autoridades brasileiras “deixarem a torre de marfim, largarem os binóculos centrados nas eleições de 2014 e pisarem na realidade…” Por que acha que os políticos estão nessa torre que mencionou?
Porque eles continuam sem dar atenção aos problemas mais graves do país: saúde, educação, saneamento e transporte público. Além disso, o Brasil necessita urgente de uma reforma política. É preciso proibir o financiamento de campanhas eleitorais por empresas e bancos, e extirpar do nosso sistema político resquícios da ditadura militar (1964-1985), como o fato de um estado com 1 milhão de habitantes ter o mesmo número de senadores, 3, que um outro com 40 milhões de habitantes.
A população se rebela contra um governo “de esquerda”. Todo mundo trai suas ideias com o poder?
O governo do PT só pode ser considerado de “esquerda” se comparado ao reacionarismo das forças políticas que lhe fazem oposição. De fato, trata-se de um governo social-popular desenvolvimentista, mãe dos pobres e pai dos ricos.
Nem todos traem suas ideias progressistas ao chegar ao poder. Exemplo disso sãoMandelaEvo MoralesChávezFidelRafael CorreaAllende e tantos outros. Mas, no Brasil, o PT trocou um projeto de país por um projeto de poder. Manter-se no poder, ainda que com alianças espúrias e concessões contrárias aos próprios princípios originários do PT, passou a ser mais importante do que implementar uma política de transformação de nossas estruturas sociais. Em 10 anos de governo, o PT não promoveu nenhuma reforma estrutural, em especial a mais importante e prometida em seus documentos fundadores – a reforma agrária.
Sua visão do Brasil é tão diferente do discurso oficial e do discurso de muitos brasileiros otimistas pela macroeconomia, pelo desenvolvimento do país e pela luta contra a pobreza…
Minha visão é diferente porque encaro a realidade pela ótica dos oprimidos, e não dos opressores. De fato, o Brasil conheceu grandes avanços em 10 anos de governo do PT: o desemprego praticamente inexiste; houve redução da miséria, da qual 40 milhões de pessoas foram salvas; expansão do crédito; acesso mais fácil aos produtos de primeira necessidade; importação de médicos estrangeiros para áreas populares; valorização do salário mínimo e controle da inflação. Tudo isso trouxe evidentes melhoras à vida do povo brasileiro.
Porém, segundo o IPEA, órgão do governo federal, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é de 175 vezes! (dado de novembro 2013). Ainda há 16 milhões de pessoas na miséria. Os serviços de saúde e o sistema público de educação estão sucateados, são de baixa qualidade. O transporte público é ineficiente. O governo continua injetando demasiado dinheiro no mercado financeiro, favorecendo a ciranda especulativa. O agronegócio desmata a Amazônia e as mineradores poluem os rios sem que o governo tome medidas eficazes de proteção ambiental e às populações indígenas (há cerca de 800 mil indígenas no Brasil).
Na sua opinião, quais seriam as razões de fundo para os problemas graves que assinalava antes?
A falta de um modelo alternativo ao neoliberalismo e ao modelo capitalista desenvolvimentista-consumista. Por outro lado, o governo é refém das classes dominantes e, embora seja resultado dos movimentos sociais, tem pouco diálogo com suas lideranças.
O senhor trabalhou no programa Fome Zero do governo de Lula. Como avalia esse programa e seu trabalho ali? Por que o deixou?
Deixei porque o Fome Zero tinha caráter emancipatório e o governo decidiu erradicá-lo para implantar o Bolsa Família, que tem caráter compensatório. Família que ingressava no Fome Zero estaria em condições de gerar a própria renda em dois ou três anos. As famílias do Bolsa Família perpetuam sua dependência ao governo federal, sem porta de saída. Por outro lado, o Fome Zero era administrado pelos Comitês Gestores, integrados por lideranças populares do município beneficiado. O Bolsa Família é administrado pelos prefeitos, que o transformam em moeda eleitoral…Tudo isso descrevo em meu livro “Calendário do Poder” (editora Rocco).
O senhor acha que a realização da Copa do Mundo ajudará o desenvolvimento do Brasil? Acha compatível o dispêndio de milhões de reais com a melhora da vida das pessoas? Os despejos são efeitos colaterais necessários para esse desenvolvimento, como dizem algumas pessoas?
Nunca imaginei que o governo brasileiro se tornasse tão subserviente aos interesses pecuniários da Fifa. Os estádios para a Copa estão sendo construídos precariamente (vide os constantes desabamentos e mortes de operários); as obras são superfaturadas (previstas inicialmente em 22 bilhões de reais, já atingem o valor de 30 bilhões de reais); a lei seca nos estádios foi revogada por pressão das cervejarias aliadas à Fifa; os ingressos são muito caros e, devido à crise financeira na Europa, o número de torcedores estrangeiros na Copa deve ser muito menor do que o previsto. Assim, não duvido que ocorram manifestações populares durante a Copa, como aconteceu durante a Copa das Confederações, em junho de 2013.
Como o senhor avalia a maneira que os meios de comunicação falam sobre o Brasil?
Os grandes meios miram o Brasil com preconceito, como se os índices da Bolsa de Valores e do PIB traduzissem a nossa realidade. E julgam que somos apenas o país do futebol, do carnaval e das mulatas. Mas isso é culpa do nosso governo, que não incentiva o turismo ecológico, cultural e científico. Mesmo o brasileiro rico prefere levar os filhos àDisneylândia do que à Amazônia… Nossas favelas são pintadas e não saneadas.
Existem propostas de reduzir a idade penal dos criminosos no Brasil. O senhor acha que é uma medida efetiva para reduzir a criminalidade? Em sua opinião, que outras medidas ajudariam a reduzir a criminalidade nas ruas do Brasil?
Em nenhum país do mundo – vide os EUA – a redução da maioridade penal ou pena de morte significou redução da criminalidade. Esta se reduz com educação básica de qualidade, creches para crianças de 0 a 6 anos, tempo integral na escola etc.
O senhor encontra diferenças entre a política de Lula e a de Dilma Rousseff?
Lula dialogava mais com os movimentos sociais e promoveu mais assentamentos e desapropriações de terras para efeito de reforma agrária do que Dilma. Mas na política econômica não há diferenças.
Que razões o senhor tem para ser otimista quanto ao futuro do Brasil?
Tenho um princípio: Guardar o pessimismo para dias melhores… Acredito na capacidade de mobilização do povo brasileiro, sobretudo dos mais jovens, e espero que nas eleições de 2014 possamos mudar o perfil conservador do Congresso Nacional e reeleger Dilma presidente, pois é melhor ela do que qualquer outro candidato com possibilidade. E sei que, se o papa é argentino, Deus é brasileiro!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Como devia estar a cabeça de Mário de Andrade ao escrever este poema?

Eu que moro na Lopes Chaves , esquina com Dr.Sérgio Meira, bebendo atrasado do ambiente onde Mário de andrade viveu, e cuja casa é hoje um centro cultural fechado e protegido a sete chaves (que ironia) por "representantes" da cultura, administrada pela prefeitura... Uma ocasião ali estive, e uma "proprietária da cultura" reclamou que no passado a Diretoria da UBE - União Brasileira de Escritores, da qual fiz parte,  ali se reunia, atrapalhando as atividades daquele centro(sic). Não importa, existem muitos parasitas agarrados nas secretarias e subsecretarias da vida, e quero distância desta inoperância. Prefiro ser excluído; é mais digno. Mas vamos ao importante. O que será que se passava na cabeça do grande poeta Mário de Andrade ao escrever "Quando eu morrer quero ficar". Seria um balanço de vida? Balanço literário? Seria a constatação da subdivisão da personalidade na pós modernidade, ele visionário modernista? Seria perceber São Paulo em tod...

Profeta Raul Seixas critica a sociedade do supérfluo

Dia 21/08/2011 fez 22 anos que perdemos este incrível músico, profeta de um tempo, com críticas profundas à sociedade de seu tempo e que mantém grande atualidade em suas análises da superficialidade do Homem que se perde do principal e se atém ao desnecessário. A música abaixo não é uma antecipação do Rap? Ouro de Tolo (1973) Eu devia estar contente Porque eu tenho um emprego Sou um dito cidadão respeitável E ganho quatro mil cruzeirosPor mês... Eu devia agradecer ao Senhor Por ter tido sucesso Na vida como artista Eu devia estar feliz Porque consegui comprar Um Corcel 73... Eu devia estar alegre E satisfeito Por morar em Ipanema Depois de ter passado Fome por dois anos Aqui na Cidade Maravilhosa... Ah!Eu devia estar sorrindo E orgulhoso Por ter finalmente vencido na vida Mas eu acho isso uma grande piada E um tanto quanto perigosa... Eu devia estar contente Por ter conseguido Tudo o que eu quis Mas confesso abestalhado Que eu estou decepcionado... Porque ...

O que escondo no bolso do vestido - Poema de Betty Vidigal

Foi em uma conversa sobre a qualidade dos poemas, quais aqueles que se tornam mais significativos em nossa vida , diferentemente de outros que não sensibilizam tanto, nem atingem a universalidade, que Betty Vidigal foi buscar, de outros tempos este poema, "Escondido no Bolso do Vestido", que agora apresento ao leitor do Pó das Estradas, para o seu deleite. O que escondo no bolso do vestido  não é para ser visto por qualquer  um que ambicione compreender  ou que às vezes cobice esta mulher.  O que guardo no bolso do vestido  e que escondo assim, ciumentamente,  é como um terço de vidro  de contas incandescentes  que se toca com as pontas dos dedos  nos momentos de perigo,  para afastar o medo;  é como um rosário antigo  que um fiel fecha na palma da mão  para fazer fugir a tentação  quando um terremoto lhe ameaça a fé:  Jesus, Maria, José,  que meu micro-vestido esvoaçante  não v...