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A síndrome do "Penalti perdido"

Não, não eram os gramados argentinos.
Eram aquelas câmeras todas à volta, aqueles olhos infindáveis perscrutando,  inquisidores.

Não era aquela areia fofa colocada artificial e providencialmente, antes dos jogos, dando a impressão de  ser um belo gramado, mas que afundava o pé na hora do chute.

Nem eram as expressões dos goleiros, raivosos, em altos gritos e braços abertos, gesticulando enquanto sambavam "dois pr'a lá, um pr'a cá".

Era o silêncio dos brasileiros, transferindo suas angústias para aqueles pés, seus sofrimentos, numa bola colocada.

Era a interrupção de tudo e de todos, necessitando do maná de seus desertos perdidos.

Suspensão do ar guardado nos pulmões, aumentando a taquicardia de ter de resolver a vida, sem condições para tal.

Era um enorme peso, o peso de uma nação.

Bastava balançar as redes, e tudo se dissolveria como em um passe de mágica.

Qual o quê?

Por um tempo, no entanto, tudo seria esquecido: o desemprego, a doença, o abandono.

Depois claro, a vida se encarregaria de lembrar por si, e o castelo iria se desmoronando, até voltar à vida normal, de periferia, da cerveja que tapa a boca, do acordar de noite e viajar de trem até a fábrica, passando o dia numa boca forno, para trazer alimento aos pequeninos em casa, que não sabem de nada, e ficam miando.

A bola, na marca de penalti, é a possibilidade real de muitas redenções imediatas, destampar de alegrias indefiníveis, solução de todas as mazelas acumuladas nos insucessos contínuos.

Um orgulho  se prepara para sair das roupas amarrotadas, das tecnologias esfomeadas, da internet solitária e intimista. Orgulho antigo, dos heróis do passado, empoado, destronado, requentado por décadas.

Um coração já bate sob intensa pressão externa.

Segura a bola nas mãos, ajeita-a na marca de penalti, afundada, desajeitada.

Corrigir impossível de posições, porque não se ajeita uma nação num único local.

Mas lá está, absurdamente, neste instante, em suas mãos.

Esperança de uma nação em vitória emergente, de crescimento exterior, não compartilhado.

Tempo de conquistas obtidas do outro lado das telas, interiorizadas, não reconhecidas, nem assumidas.

A bola escorrega a cada colocação, lembrando o lado humano, do homem que quer ser endeusado, o lado que erra e sofre, o lado que chora e sente.

Não importa, a bola acaba sendo forçada a aceitar o local de qualquer jeito, sem querer.
Deixa uma ponta de insegurança, como as vezes em que na infância a travessura foi repreendida, e a liberdade enquadrada.

Passos atrás e olhos no gol, medindo, disfarçando. Passa rapidamente do equilíbrio para a raiva.

Não será mais uma bola colocada, como foi durante o treino, será um chutão, empurrando bola, goleiro, rede, traves, tudo para longe, como se não fizessem parte daquela realidade, expulsas por um cartão vermelho interior, fuga infinita daquele lugar síntese.

O gol é a Copa de 2014, é a convocação, é o futuro, a nação; é  muito mais que um jogo.

O gol é a saída dos brasileiros de seu silêncio de fazer dó, guardado em tantos quartos sofridos das quedas diárias, retomados ininterruptamente, até anoitecer novamente em lamentos.

É muito mais que um gol.

Parecia tão fácil no treino, com aquelas traves tão largas...

Agora o goleiro parece engrandecer diante dos olhos, ocupando todo o espaço...

Sai cheio de pose midiática, em velocidade moderada, e disposição confusa, até bater na bola.

Ocorre o inusitado!

Todos os penaltis perdidos!

A Copa de 2014 está posta em dúvida, a vida desfigurada, recolocada rigorosamente no seu devido e insosso lugar.

A bola viajou para o além, para a incapacidade de representar tudo, para uma ilha solitária, distante.

Fugiu para longe daquela pressão social, como desejo íntimo do jogador, síntese de um país que perdeu a tradição.

Não foi encontrada, está desaparecida.

Procura-se uma pelota que pode ter caído num campinho de terra batida, ou numa várzea qualquer.

Quem sabe lá, ela esteja sendo revivida de seus luxos, seus ídolos.

Quem sabe lá, ela possa renascer com uma originalidade natural.

O Brasil ainda precisa dos pés descalços, cabular aulas, misturado às batidas do samba, evocação de uma cultura revoltada, afogada no álcool, e ao mesmo tempo criativa, altiva.

Só assim os pés se ajeitarão novamente, se aprumarão.

Só assim o gol voltará a ser gol, e não um moinho quixotesco

Só assim Brasil voltará a ser dos brasileiros





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