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97% dos brasileiros se inquietam com a corrupção, mas isentam os corruptores

 

Em pesquisa realizada pelo CRIP (Centro de Referência do Interesse público) nos últimos anos nos deparamos com um dado preocupante. Quase a totalidade – cerca de 97%- dos brasileiros consideram a corrupção um fenômeno grave ou muito grave de nossa vida pública.

Por Newton Bignotto*

Esses dados mostram sem equívoco que a população se inquieta com as consequências dos fatos que com frequência povoam os noticiários e que mostram agentes públicos sendo acusados de receber dinheiro ou outros benefícios em troca de favores prestados a terceiros.

A percepção de que a corrupção faz parte de nosso cotidiano e de que ela afeta particularmente os agentes do Estado parece indicar que existe em nosso país consciência dos males decorrentes das práticas corruptas e um repúdio correspondente das mesmas. Com efeito nossas pesquisas mostram que os poderes públicos, o Legislativo em primeiro lugar, são considerados o verdadeiro lar da corrupção.

No polo contrário, quanto mais nos aproximamos da família e dos amigos mais acreditamos que estamos longe de seus efeitos, mesmo quando confrontados com a lógica dos pequenos favores, que costumam acompanhar a prática clientelista tão comum em nossa vida pública.

O que torna esses dados de percepção da corrupção mais interessantes é que eles parecem convergir para o mesmo ponto de uma visão bastante influente entre os teóricos políticos e que foi expressa no conhecido Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio. Nele aprendemos que a corrupção designa “o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensas”. Em outro lugar do verbete o autor afirma: “A Corrupção é considerada em termos de legalidade e ilegalidade e não de moralidade e imoralidade”.

A primeira parte da definição parece estar em sintonia com a percepção de que a corrupção diz respeito, sobretudo aos agentes públicos. Não há nada de errado com essa maneira de ver as coisas, mas, no caso brasileiro, ela serve muitas vezes para mascarar a extensão e os atores envolvidos nos diversos casos de desvios de conduta que vêm a público.

Com frequência, o agente público é exposto à execração pública sem que os que o corromperam sejam sequer inquietados. Tudo se passa como se houvesse uma assimetria absoluta entre os atores. Os primeiros, os agentes públicos, encarnam o processo mesmo de corrupção, enquanto os corruptores são olhados pelas lentes cínicas de muitos analistas simplesmente como parte de um processo inelutável das sociedades contemporâneas. Abafado o escândalo, ou punido um culpado, as empresas ou atores privados são deixados de lado, como se investigá-los expusesse o Estado a um risco maior do que o representado pela corrupção ela mesma.

Agentes financiadores de campanhas políticas, parceiros em investimentos importantes nos negócios do País, são vistos como atores determinantes para o sucesso dos governantes que, por isso, preferem muitas vezes fechar os olhos para o que todos podem ver: a luta feroz por vantagens competitivas nos negócios com o Estado é a fonte maior para a corrupção daqueles que detém algum poder para decidir a favor dos que o corrompem.

Quanto aos agentes públicos, isolados em sua ação e responsabilizados quase que exclusivamente pelos fatos que envolvem muitos atores, eles tentam se refugiar no terreno da pura legalidade, para apresentar sua defesa, procurando assim circunscrever seus atos a uma esfera na qual acreditam poder se defender de forma eficaz. Não resta dúvida de que a corrupção deve ser tratada dentro do parâmetro da legalidade e da ilegalidade. Não podemos simplesmente naturalizar o fenômeno dizendo que é assim em todo lugar e que não há nada a fazer. O problema com essa abordagem, assim como ocorre com o esquecimento dos corruptores, não é o que ela mostra, mas sim o que deixa de lado, ou seja, a dimensão política e moral da corrupção.

Para compreender o que queremos dizer, vamos relegar a um segundo plano os casos mais escandalosos dos agentes do Estado que são surpreendidos recebendo dinheiro vivo. A cena é chocante, ela pode ser compreendida dentro da lógica da legalidade e parece-nos natural que os envolvidos sejam punidos. Eles se conformam à imagem que temos do corrupto e parecem ter saído de um manual de ciência política. Neles encontramos a figura do agente público recebendo uma vantagem indevida de forma explícita. Com eles compreendemos que mais importante do que a sanção moral é a punição, que deve advir da aplicação da lei. O problema é que no mundo atual esses procedimentos escandalosos estão longe de ser os mais relevantes.

Uma boa parte dos casos de corrupção não está ligado a delitos facilmente percebidos como tal, mas a complexos mecanismos, que envolvem países e empresas transnacionais, cujas operações se dão ao mesmo tempo em vários contextos legais. Assim, é perfeitamente possível que uma parte de uma operação financeira ocorra num país, que aceita determinadas práticas, e que em seguida os ganhos decorrentes desses movimentos sejam incorporados a projetos que conservam todo o ar de legalidade.

Da mesma maneira, é muito mais fácil provar o recebimento direto de propina do que provar a venda de informações privilegiadas, cujo uso pode ocorrer num momento e num contexto muito diferente daquele no qual o agente público esteve envolvido.

O exame da legalidade dos atos de um agente político é sem dúvida um procedimento necessário ao combate à corrupção. Não podemos substituí-lo simplesmente por julgamentos políticos sem comprometer a democracia. Mas se quisermos entender o processo de corrupção em nossas sociedades, é necessário levar em conta que ele diz respeito ao Estado, a seus agentes, mas também ao conjunto de forças que dentro de uma nação luta para obter vantagens e privilégios.

Nesse sentido, a corrupção existe numa rede complexa de relações e de interações. Deixar de lado um de seus atores no momento de combatê-la corresponde de fato a conservá-la com uma forma corrente da vida pública.

No caso brasileiro, a ação muitas vezes eficaz dos órgãos de controle no combate à corrupção dos agentes do Estado representa um passo importante, mas não decisivo de combate à corrupção. Enquanto os grandes corruptores continuarem a ser sistematicamente esquecidos pelos poderes públicos e pelos meios de comunicação continuaremos a ser surpreendidos pelos escândalos cuja repetição não parece nos ensinar coisa alguma.

A limitação de nossas investigações sobre a natureza das ações dos muitos atores envolvidos nos casos de corrupção fazem com que deles não decorra nenhum avanço institucional e nem mesmo um desejo real de dotar a legislação de mecanismos adequados para combater um fenômeno extremamente complexo. Enquanto a percepção da corrupção pela população continuar a ser alimentada por fatos escabrosos e parecer ser confirmada por análises simplistas do fenômeno, estaremos muito longe de realmente enfrentá-lo.

*Newton Bignotto é pós-doutor em Filosofia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, pós-doutor em Filosofia pela Universite de Paris VII – Universite Denis Diderot, Doutor em Filosofia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Mestre em Filosofia pela UFMG e graduado em Filosofia pela UFMG.

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