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Homenagem a frei Giorgio Callegari, o "Pippo".


Hoje quero fazer memória a um grande herói da Históra do Brasil, o frei Giorgio Callegari.

Gosto muito do monumento ao soldado desconhecido, porque muitos heróis brasileiros estão no anonimato, com suas tarefas realizadas na conquista da democracia que experimentamos.

Mas é preciso exaltar estas personalidades cheias de vida e disposição em transformar o nosso país numa verdadeira nação livre.

Posso dizer, pela convivência que tive, que hoje certamente ele estaria incomodado com as condições em que se encontra grande parte da população brasileira,  pressionando dirigentes e organizando movimentos para alcançar conquistas ainda maiores, para melhorar suas condições de vida.

Não me lembro bem o ano em que nos conhecemos, deve ter sido entre 1968 e 1970, talvez um pouco antes.

Eu era estudante secundarista, e já participava do movimento estudantil em Pinheiros (Casa do estudante pinheirense - hoje extinta), e diretamente no movimento de massa, sem estar organizado em alguma escola, especificamente.

Sabia quando haveria uma passeata e la ia eu.

Tivera formação católica, pois minha mãe era católica, e frequentava a Igreja de São Domingos, dos dominicanos, na rua Caiubí, Perdizes, São Paulo.

Lá fizera minha primeira comunhão, e participava das primeiras missas em português, influência do Concílio Vaticano II.

A Igreja de São Domingos é imensa, mas ficava repleta naquela época, em plena ditadura militar, sendo considerada um território livre, onde a palavra era proclamada com liberdade.

Fluiam para lá aos domingos, grande quantidade de pessoas, professores, intelectuais, educadores, profissionais liberais, enfim, todos os que desejavam um Brasil livre do regime militar.

Os sermões do frei Anselmo e frei Josafá (hoje chamados de homilia), eram famosos,pela sua coragem e destemor.

Até a sexta feira da Paixão de Cristo foi montada e cantada por Geraldo Vandré nesta igreja, situação que companhei de perto.

Definitivamente não era um período onde os padres podiam compor músicas de louvor a Deus, numa perspectiva intimista e separada da realidade , já colhendo da liberdade regada por outros que lhes antecederam. Nada contra, mas um pouco de consciência social não faz mal para ninguém. Senão depois, ficam falando apenas do aborto, quando a dimensão da vida é bem mais ampla.

Ao contrário, era um período onde tudo era vigiado.

Foi neste contexto que nos conhecemos. Ele recém chegado da Itália, eu um jovem, órfão de pai, desejoso de beber conhecimento.

Não deu outra, mandou-me comprar um livro de italiano, e pôs-se a me ensinar. Não durou muito tempo, por total diferença de interesses (inaptidão mesmo), mas abriu-me uma das melhores relações que já tive em vida.

Minha consciência de cidadão, consciência política, democrática, consolidou-se na convivência com frei Giorgio, usualmente chamado de Pippo.

Pariticipei com ele de muitos movimentos.

Fomos juntos, em meu fusca azul, visitar e  conversar com Dom Helder Câmara, a pintora Mira Schendel, o Professor Florestan Fernandes, Professor Alfredo Bosi, e grande número de intelectuais, General Zerbini, cassado em 64 e a  sua esposa, a grande Dona Terezinha Zerbini, precursora dos movimentos de anistia no Brasil, etc.

Participávamos durante os dias nos movimentos e nas lutas, e às noites conjurávamos junto a intelectuais como ir avançando na luta pelas liberdades.

Isto tudo, sempre olhando do lado, e falando em voz baixa.

Na, verdade eu era um coadjuvante disto tudo, que saboreava estas convivências aproveitando-me das análises políticas e das discussões filosóficas, em que ele, Giorgio, era sempre colocado, pela sua condição de frei.

Giorgio Callegari vinha frequentamente almoçar em casa. Era um bom prato, meio obeso. Mais tarde ele trabalhou provavelmente o jejum (não a dieta) em si, e emagreceu significativamente, não sei.

Ele celebrou o meu casamento, na própria Igreja de São Domingos, com Margarida Maria.Pereira Naves Fernandes, e posteriormente fez o batismos de nossos filhos Juliana Fernandes e Rafael Fernandes.

No decorrer do movimento fiz minha escolha política e separei-me dele, por questões práticas de ações que vão nos ocupando, e nos distanciando.

Mas nos víamos com bastante frequência na casa de General Zerbini e Dona Terezinha Zerbini, que acabaram tornando-se nossos padrinhos de casamento, a dos quais guardo terna lembrança.

No decorrer da luta, a ordem dos dominicanos foi sendo perseguida pela ditadura, pelo seu posicionamento, quase sendo expulsa do país, como o foram os Jesuítas no passado.

Lembro-me de carregar uma caixa de pedras com o Pippo, até o último andar do antigo convento, onde hoje se localiza o colégio Pentágono, para a defesa contra uma iminente invasão, que acabou não ocorrendo. Era o Davi contra o Golias.

Frei Giorgio acabou sendo preso e passou, imagino uns três anos na prisão, onde foi torturado e fez greve de fome.

Por fim, foi trocado, junto a outros presos políticos, pela libertação de algum embaixador ou figurão da época, não importa.

Com isto o frei Giorgio acabou sendo expulso do país.

Mais tarde encontrei-me com ele, voltando na clandestinidade. Voltara cuidadoso, vindo por outros países da América Latina, sem aceitar a condição de expulso.

Passada a Ditadura, Pippo organiza o CEPE . Repasso este documento que recolhi  sobre o CEPE, que existe até hoje

"O CEPE foi idealizado na década de ‘70, no contexto da luta contra a ditadura militar brasileira. Sua criação foi pensada originariamente pelo frei Giorgio Callegari, religioso dominicano de origem italiana (falecido em 2003), tendo como base a necessidade de dispor de um instrumento institucional voltado para a promoção dos direitos humanos e o resgate da cidadania dos que ‘não tem voz nem vez’. O CEPE nasceu com uma identidade explicitamente cristã, e também ecumênica, como é indicado pelo seu próprio nome: “Centro Ecumênico...”. A sua atuação mais marcante foi, desde o começo, no campo da promoção humana e da formação voltada para crianças, adolescentes e jovens pobres das favelas de São Paulo e Peruíbe. Era o grande sonho de frei Giorgio: formar gente nova, para um mundo diferente! "

Pippo organizou uma revista ligada ao movimento popular e à igreja,  a qual deu o nome de "Avesso do avesso", onde mostrava a sua posição libertária abertamente, com artigos seus e de intelectuais da sociedade.

Nos tempos mais recentes, frei Giorgio criou uma colônia de Férias, a qual chamou de Colônia Veneza, ecumênica, voltada a atender as crianças da periferia, e que também existe até os dias de hoje.

Deixou, portanto, uma marca política da melhor estirpe de um revolucionário e cristão, e um trabalho social, como quê percebendo que sendo a dimensão da luta muito maior do que sua capacidade e tempo de vida, plantou ações práticas de exaltação e valorização dos mais pobres.

A um certo tempo foi descoberto um câncer em seu cérebro, ele que entregou a mente diuturnamente à libertação de outro povo que não o seu.

Visitei-o no hospital, num pós operatório, em que fora cortado e estava com a cabeça costurada.

Não contive as lagrimas.

Seu falecimento me deixou a exata noção de que vivera junto a uma pessoa santa.

Gritei alto e a bom tom ao final de sua missa de corpo presente, e grito agora a todos vocês que estão lendo este artigo:

Viva o frei Giorgio Callegari!

Viva!, digam todos.


Comentários

Eduardo Foganholo disse…
Conheci Frei Giorgio em 1985 quando fazia parte do Movimento de Casais da Igreja de S. Judas Tadeu, em São Paulo. Nessa época Frei Giorgio era padre em uma capela no Jardim Míriam, próximo de uma grande favela lá existente, tendo montado uma mercearia com doações feitas pelos mais abastados, cujos produtos eram vendidos a preços simbólicos ao pessoal da favela.
Nessa época, nasceu meu filho mais velho Guilherme, que Frei Giorgio fez questão de batizar.
Hoje,morando em Bauru desde 1987, e com saudades desse amigo querido, procurei por Frei Giorgio e, pela Internet tive conhecimento que havia falecido em 2.003.
Um vazio ficou em meu coração pois não esqueço as conversas que tínhamos, os projetos que acabaram não realizados, enfim... dos diálogos tidos.
Quem sabe, um dia poderemos nos encontrar. Queira Deus! E que o projeta onde estiver.
Eduardo Foganholo
Prezado Eduardo Foganholo. Obrigado pelas palavras carinhosas que você trouxo sobre o Pippo. O Giorgio era mais que um frei, era um amigo. A morte dele nos matou um pouco, matou um pouco o Brasil com sua ausência. Saber novidades dele através de pessoas como você, são um grande alento. Penso que um dia se poderá iniciar um processo de canonização dele, porque foi uma pessoa santa.
Anônimo disse…
João Paulo, isso é HISTÓRIA!
Anônimo disse…
Viva Frei Giorgio Calegari! Que beleza de justa homenagem! Não conheci sua história e sua vida, mas lendo seu depoimento, encanta-me a existência de vidas autênticas como essa.
Parabéns João Paulo por resgatar e trazer a público essa nobreza e santidade de vida!
Inesquecível. Sempre me lembro dele e amei ler o que você escreveu. Ele ia muito em casa e lá conversávamos...

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